Administração da crise em tempos de mudança
O fim da globalização neoliberal está a dar um impulso à administração da crise neofascista – especialmente no antigo “campeão mundial de exportação”
Seria errado postular uma inevitabilidade causal unilateral entre o desenvolvimento da base económica e a superestrutura político-ideológica, seguindo a má tradição do antigo marxismo. O desenvolvimento económico, o desenrolar das contradições internas do capital não determina unilateralmente o sistema político. Há claramente interacções e várias opções abertas às elites funcionais capitalistas quando reagem às consequências da crise. Aqui – e isto é crucial – o curso futuro da crise pode realmente ser influenciado pela política, ainda que esta não esteja obviamente em posição de ultrapassar a crise sistémica no interior do capitalismo. Muitas das medidas de emergência discutidas pelos políticos em resposta aos surtos de crise podem ser implementadas por governos ou regimes de várias orientações políticas. Isto é particularmente evidente na grave fase de crise dos anos 30 do século XX, quando o proteccionismo, os programas de trabalho e o estatismo foram prosseguidos por Estados tão diversos como os EUA de Roosevelt e a Alemanha nazi.
No entanto, a crise na sua nova fase, que começou o mais tardar com a pandemia e o aumento da inflação, torna pelo menos viável uma opção fascista, especialmente em países com “tradições” correspondentes. A reviravolta fundamental no processo de crise e no seu tratamento da contradição foi iniciada pelo surto de crise induzido pela pandemia. A guerra na Ucrânia é de facto uma reacção a esta nova fase de crise, que põe fim à globalização neoliberal – e que se caracteriza pela estagflação, desglobalização, proteccionismo, política industrial activa, nearshoring e integração vertical.
As quatro décadas do neoliberalismo – desde os anos 80 até cerca de 2020 – foram de facto uma reacção à crise que prolongou a contradição interna do capital. Esta contradição fundamental do modo de produção capitalista desenrola-se assim: O trabalho assalariado produtivo constitui a substância do capital, mas ao mesmo tempo o processo de valorização do capital esforça-se por afastar o trabalho assalariado do processo de produção através de medidas de racionalização impostas pela concorrência.
Marx introduziu a genial designação de “contradição em processo” para designar este processo autodestrutivo. Esta contradição da produção capitalista de mercadorias, em que o capital minimiza a sua própria substância que é o trabalho assalariado através de acções de racionalização por via da concorrência, só pode ser mantida a “processar” através da expansão contínua e do desenvolvimento de novos campos de valorização da produção de mercadorias. O mesmo progresso científico e tecnológico que leva a uma redução da massa de trabalho assalariado despendida em ramos industriais estabelecidos também dá origem a novos ramos industriais ou métodos de produção.
O resultado disto é precisamente a mudança estrutural industrial – a capacidade do capital para se “reinventar” constantemente – de que a apologética burguesa do capitalismo tanto se orgulha. Desde o início da industrialização no século XVIII, a economia capitalista tem-se caracterizado por uma mudança estrutural em que a indústria têxtil, a indústria pesada, a indústria química, a indústria eléctrica e mais recentemente a construção automóvel fordista serviram como sectores de ponta que valorizavam trabalho assalariado em grande escala. Com o advento da automatização e da revolução informática, a mudança estrutural industrial começou a falhar nas décadas de 1970 e 1980. Estas novas tecnologias criaram muito menos empregos do que os que foram racionalizados pela sua aplicação no conjunto da economia. As forças produtivas rompem assim “os grilhões das relações de produção” (Marx) e o capital depara-se com um “limite interno” (Robert Kurz) à sua capacidade de desenvolvimento.
O “resgate” do capitalismo pelo neoliberalismo
O facto de o capital atingir o seu limite interno como contradição em processo manifestou-se muito concretamente no período de crise de estagflação que se seguiu ao boom do pós-guerra, em que já não foi possível desenvolver um novo sector industrial de ponta com valorização maciça de trabalho assalariado. O final da década de 1970 e o início da década de 1980 caracterizaram-se por um crescimento económico anémico, recessões frequentes, um rápido aumento do desemprego em massa e por vezes uma inflação de dois dígitos. Em termos históricos esta estagflação dos anos 70 – uma palavra formada pelas palavras estagnação e inflação – foi precisamente o período de crise que abriu caminho ao neoliberalismo, uma vez que as estratégias de crise keynesianas falharam.
Para além de destruir ou retirar poder ao movimento operário (Reino Unido, EUA), o que levou a uma estagnação prolongada dos níveis salariais nos EUA, o neoliberalismo reagiu à crise “retirando os dispositivos de segurança” ao capitalismo, com uma fuga para a frente em que os mercados foram desregulamentados – especialmente no sector financeiro. Para evitar entrar em colapso devido às suas contradições internas, na viragem neoliberal dos anos 80 o capitalismo abandonou efectivamente o terreno da valorização da força de trabalho para se lançar nas alturas de uma estrutura económica dominada pelos mercados financeiros. O sistema reagiu ao fracasso da transformação estrutural industrial estabelecendo o sector financeiro como “sector líder”.
A valorização do capital foi assim cada vez mais simulada nos mercados financeiros sob o neoliberalismo. Uma vez que a longo prazo não é possível realizar uma verdadeira valorização do capital na esfera financeira, o crescimento nas quatro décadas neoliberais foi em última análise alimentado por um boom historicamente único na mercadoria mais importante que o sector financeiro tem para oferecer: o crédito. O sistema capitalista global funciona, portanto, com base no crédito, numa antecipação da valorização futura, que é empurrada cada vez mais para o futuro através de empréstimos. O crédito gera a procura que sustenta a produção capitalista de mercadorias, que está a sufocar na sua produtividade. Isto pode ser visto em termos concretos na dívida global, que aumentou muito mais rapidamente do que a produção económica global na era neoliberal: de cerca de 120 por cento na década de 1970 para 238 por cento em 2022. [1]
O mecanismo central que transformou a crescente dívida gerada pelo mercado financeiro em crescimento económico real foi a bolha especulativa. Assim, desde a década de 1980, o sistema tem-se baseado cada vez mais no ar “quente” de bolhas especulativas sempre crescentes e revezando-se: desde a bolha das “dot-com” na viragem do milénio, quando a Internet emergente levou a uma especulação selvagem em acções de alta tecnologia que rebentou em 2000, passando pela bolha imobiliária na Europa e nos EUA, até à grande bolha de liquidez mantida pelos bancos centrais, que só terminou com a inflação em 2020. Logo que uma bolha rebenta, há a ameaça de um crash, que é evitado pelo aparecimento de uma nova bonança especulativa. Poder-se-ia falar aqui de uma verdadeira transferência de bolhas, em que todas as medidas de política fiscal e monetária utilizadas para combater as consequências da dinâmica especulativa estourada contribuem para lançar as bases para a formação de uma nova bolha. Em última análise a política financeira capitalista só pode apagar o fogo da especulação com gasolina.
O fim do neoliberalismo
No entanto, não se trata de um processo linear, mas dinâmico. Os custos e as despesas para estabilizar o sistema financeiro mundial aumentaram cada vez mais à medida que cada bolha rebentava, até que, na fase inflacionista da política monetária, fora dos EUA com a sua moeda de reserva mundial, não restou outra alternativa senão parar a política monetária expansionista que esteve na base do boom dos mercados financeiros. A política de crise capitalista montou até à morte o seu cavalo neoliberal, impulsionado pelo mercado financeiro, no qual tentou fugir do limite interno do capital durante mais de quatro décadas. O adiamento neoliberal parece estar a chegar ao fim e a estagflação esquecida durante décadas está a regressar numa escada muito mais elevada. A diferença mais importante entre a actual vaga de inflação e a fase histórica da estagflação é que uma fase de taxas de juro elevadas, como a iniciada pelo presidente da Reserva Federal, Volcker, a partir de 1979, já não oferece uma saída face à instabilidade da esfera financeira.
Com o fim da economia global do défice, os circuitos globais do défice, que constituíam de facto a base da globalização neoliberal, também foram prejudicados. Nem todas as economias ficaram igualmente endividadas na era neoliberal; os países orientados para a exportação puderam exportar os seus excedentes de produção para os países deficitários no âmbito destes circuitos. O maior, nomeadamente o circuito do défice do Pacífico entre os Estados Unidos e a China, caracterizou-se pelo facto de a República Popular, que se estava a tornar a oficina do mundo, ter exportado quantidades gigantescas de mercadorias através do Pacífico para os EUA em desindustrialização, criando assim enormes excedentes comerciais, enquanto um fluxo do mercado financeiro de títulos de dívida dos EUA fluía na direcção oposta, de modo que a China se tornou o maior credor externo de Washington durante algum tempo. Um circuito de défice semelhante, mais pequeno, desenvolveu-se entre a RFA e a periferia sul da zona euro no período entre a introdução do euro e a crise do euro.
Assim a globalização não se caracterizou apenas pelo estabelecimento de cadeias de abastecimento globais, mas também por uma correspondente globalização da dinâmica da dívida realizada através de circuitos de défice, dívida que como mencionado cresceu mais rapidamente do que a produção económica global nas últimas décadas – e consequentemente funcionou como um importante motor económico ao gerar procura financiada a crédito. A globalização, que originou estes gigantescos desequilíbrios globais, foi uma reacção sistémica, uma fuga às crescentes contradições internas do modo de produção capitalista, que está a sufocar com o seu próprio desenvolvimento da produtividade.
O regresso do proteccionismo
O que se está a passar agora a nível mundial pode ser estudado na crise do euro: Enquanto as montanhas de dívidas crescem e as bolhas dos mercados financeiros aumentam, todos os Estados envolvidos parecem beneficiar deste crescimento do crédito. No entanto, assim que as bolhas rebentam, começa a batalha sobre quem deve suportar os custos da crise. Na Europa, como sabemos, Berlim aproveitou a crise para transferir os custos da crise para o Sul da Europa, sob a forma dos infames ditames de austeridade de Schäuble. Agora está iminente a nível mundial o colapso da muito maior economia de défice financiada pela dívida, que nos últimos tempos tem sido mantida viva sobretudo pela política monetária expansiva dos bancos centrais. O nacionalismo e o neofascismo crescentes, a ameaça aguda de uma guerra mundial são a expressão deste mesmo processo de crise. É pois possível estabelecer uma analogia com o pré-fascismo dos anos 30 do século XX, quando as consequências da crise económica mundial que eclodiu em 1929 foram exacerbadas por um rápido aumento do proteccionismo.
O que nos leva à miséria alemã. Com a erosão da globalização, a estratégia económica a longo prazo de estrita orientação exportadora seguida pela República Federal desde a introdução do euro, cujo “modelo de negócio” económico se baseava na obtenção dos maiores excedentes comerciais possíveis no quadro dos circuitos de défice acima referidos, também está a falhar. Com esta política dita de “empobrecer o vizinho”, a dívida, a desindustrialização e o desemprego são exportados para os países-alvo dos excedentes de exportação. Depois de Berlim ter arruinado os Estados europeus em crise através de políticas de austeridade draconianas, esta estratégia de exportação foi direccionada para países não europeus, como os EUA. [2]
No entanto esta estratégia centrada na exportação está cada vez mais em conflito com as tendências proteccionistas de Washington, onde a administração Biden está efectivamente a dar continuidade ao nacionalismo económico de Trump visando a reindustrialização. Washington já não está disposta – precisamente devido à crescente instabilidade política interna – a continuar a aceitar os elevados défices comerciais que estabilizaram o sistema mundial hiperprodutivo durante a globalização neoliberal – e que foram possibilitados pelo dólar como moeda de reserva mundial. O Financial Times descreveu já em meados de 2023 esta mudança na estratégia de política económica de Washington, que foi iniciada pela administração Trump e promovida por Biden. Na sua essência trata-se da rejeição proteccionista da globalização. Através de uma “política externa para a classe média”, a Casa Branca pretendia contrariar o “esvaziamento da base industrial”, a emergência de “rivais geopolíticos” e a crescente “desigualdade” que põe em causa a democracia. [3]
Uma expressão visível do pleno início da desglobalização é o nearshoring, em que os EUA procuram substituir a sua dependência económica da indústria exportadora chinesa pelo reforço das capacidades industriais no México. Além disso, os fornecedores alemães de automóveis continuam a enfrentar a ameaça de exclusão das cadeias de produção americanas devido às disposições do programa de subsídios do “Inflation Reduction Act”. É igualmente improvável uma concessão substancial por parte de Washington, uma vez que o proteccionismo parece estar a funcionar. As empresas alemãs estão a investir cada vez mais nos EUA para beneficiarem dos subsídios de Washington. De facto, existe uma dissociação económica entre os EUA e a UE, com Washington a afastar-se economicamente, enquanto sobretudo os europeus têm de suportar as consequências da crise.
Perigo de uma “revolta autoritária”
Berlim passou assim o século XXI a alinhar a República Federal – e a partir de 2010, na sequência da crise do euro, a zona euro – por um modelo económico assente na exportação e destinado a obter excedentes comerciais na economia mundial globalizada da era neoliberal. Com o início da desglobalização, o antigo campeão mundial dos excedentes de exportação encontra-se num impasse de política económica, que a médio prazo põe em causa não só a estabilidade política da República Federal da Alemanha, como também a continuação da existência política da zona euro. E é precisamente este regresso do proteccionismo que dá um novo impulso à nova direita. Até certo ponto, a boa economia de exportação funcionou como um mecanismo de segurança civilizacional na Alemanha, com a sua terrível tradição autoritária-fascista, uma vez que forneceu um sólido argumento económico contra o nacionalismo. Afinal de contas a Alemanha era um “vencedor da globalização”.
Mas é precisamente a indústria de exportação alemã que está actualmente a sofrer uma recessão, que é na verdade apenas o princípio do fim do modelo económico alemão fixado na exportação. O forte declínio das exportações em 2023 contribuiu significativamente para o fraco desenvolvimento económico da Alemanha, com poucas melhorias previstas para os próximos anos. Mas isto também significa que os anos de prosperidade possibilitados pelos excedentes de exportação chegarão inevitavelmente ao fim para a República Federal. O peso na política de poder da indústria de exportação alemã diminuirá, portanto, numa altura em que, pela primeira vez desde há muito tempo, a Alemanha entrará também numa fase de crise duradoura, da qual a nova direita ameaça mais uma vez tirar partido.
Foram precisamente os responsáveis da indústria de grande escala e de exportação que repetidamente tomaram posição contra a nova direita. A AfD e os estúpidos nazis eram vistos como um problema de imagem que prejudicava a marca “Made in Germany” na sua busca de sucesso global. A BDI (Federação das Indústrias Alemãs) e os gestores de topo, como o presidente da Siemens, Joe Kaeser, puderam invocar interesses económicos reais nos seus argumentos contra a direita. A facção do capital que se opõe mais firmemente à participação da AfD no governo é, portanto, a grande indústria alemã de exportação, que está a perder influência devido à crise. A vanguarda reaccionária da elite funcional, que desde muito cedo fez um pacto com a AfD e a frente transversal, é constituída por pequenos empresários e PME, como se pode ver pelas ligações entre a associação dos “empresários familiares” e a AfD. Os capitalistas orientados para o mercado interno (“Müller Milch”) também parecem estar mais inclinados a considerar opções de extrema-direita.
A AfD já é a segunda força a nível federal. O facto de a ascensão da AfD ter ocorrido durante uma fase de relativa prosperidade económica mostra até que ponto o gelo civilizacional é fino na Alemanha; a ascensão foi alimentada pelo medo alemão da crise, e não por um verdadeiro surto de crise, como o que o sul da Europa teve de suportar durante a crise do euro. Desde a crise dos refugiados, todo o antifascismo liberal burguês, em grande parte alinhado com os argumentos da indústria exportadora, sublinha a “utilidade” económica da globalização, da abertura das fronteiras para a circulação de mercadorias e da imigração: os refugiados são economicamente úteis devido ao envelhecimento da República Federal, o país exportador deve continuar a ser atractivo para os trabalhadores qualificados, pelo menos segundo os argumentos comuns. No entanto estas narrativas cultivadas na corrente dominante liberal desaparecerão assim que a estagnação e a recessão se instalarem na Alemanha, enquanto as exportações continuarão a diminuir, para alimentar ainda mais o “medo alemão”, que tão facilmente se transforma em ódio contra os socialmente desfavorecidos.
A questão é que esta revolta autoritária nunca chegará ao poder, a menos que uma parte substancial da elite funcional se decida a favor desta opção fascista. E há sinais de uma fractura aberta no seio da elite dirigente alemã quanto à participação no governo de um partido que se aproxima da extrema-direita. Esta é a brecha decisiva na barragem: irão facções inteiras seguir os simpatizantes da AfD, como senhor Müller da Müllermilch ou o bilionário do Mövenpick, o barão August von Finck? Na classe média? Entre os empresários familiares?
Os movimentos fascistas só chegam ao poder em tempos de crise, quando os choques e as convulsões atingem um nível tal que as elites funcionais os encaram como o “mal menor”. Dito de forma simples: só quando os gestores do capital estão de tal modo mergulhados no pântano da crise que sentem a água até ao pescoço, é que tapam o nariz e estendem a mão à extrema-direita. E então não há como detê-los, pois a revolta autoritária fascista, que sempre anseia pela aprovação das autoridades, é alimentada por isso (o que aliás também anula a intenção da esquerda de abalar os seus apoiantes, desmascarando os poderosos apoiantes fascistas). Os personagens autoritários não são dissuadidos, mas atraídos pela companhia dos funcionários e bilionários da AfD).
Tomasz Konicz
[1] https://www.imf.org/en/Blogs/Articles/2023/09/13/global-debt-is-returning-to-its-rising-trend [2] https://www.census.gov/foreign-trade/balance/c0003.html [3] https://www.ft.com/content/77faa249-0f88-4700-95d2-ecd7e9e745f9Original “Krisenverwaltung im Wandel der Zeiten” em exit-online.org. Antes publicado vez em oekumenisches-netz.de. Texto da Netztelegramm de Outubro 2024. Tradução de Boaventura Antunes (10/2024)