Deutscher Originaltext “Du musst ‘Gesundheitsdiktatur’ sagen!” auf www.exit-online.org, 19.10.2022.
A conspiração como chave do conhecimento
„Você disse ‚ditadura da saúde‘?“ foi o título com que Anselm Jappe encabeçou as suas críticas às medidas sanitárias repressivas, incluindo a vacinação obrigatória, tendo-se defendido contra rótulos como „teórico da conspiração“. Isto já não é suficiente para Karl Rauschenbach1 . Que quer ir além de Jappe… O fundo negativo aqui é a exit!, que ele imagina estar „em guerra“ contra fantasias de conspiração. As fileiras teriam sido cerradas com „três dogmas“, que ao mesmo tempo representariam um „código moral“: „Não negarás o coronavírus nem a pandemia! Não serás um teórico da conspiração! Não serás um pensador transversal“!
Ora o zelo de Rauschenbach contra a exit! poderia ser deixado de lado se não revelasse algo sobre „o pensamento da conspiração e o pensamento transversal“. Já o dogmatismo atribuído à exit! está mais que tratado e construído com as estatísticas que supostamente o devem validar. A relação com a pandemia de coronavírus e a reacção política à mesma estão a tornar-se, por assim dizer, uma categoria epistemológica fundamental, com a qual é suposto que as relações sociais serão desenvolvidas e haverá alucinações de uma práxis de resistência. Não se trata de compreender o coronavírus no contexto da totalidade social, pelo contrário: a totalidade social e as suas consequências para a práxis são derivadas da pandemia – e isto claramente, sem „ses“ nem „mas“.
Nem mesmo o discurso de Jappe sobre a „ditadura da saúde“ consegue ultrapassar uma fasquia tão alta. Passa abaixo dela em termos de teoria da conspiração. Rauschenbach fala longamente sobre isso. Ele refere-se a „mecanismos sociais … que conseguem desenvolver-se sem uma conspiração autêntica (sic!)“ e nomeia como exemplos „o sensacionalismo dos media„, „o conformismo dos políticos“, „a procura de lucro de actores e de capitais individuais, tais como a indústria farmacêutica ou esta economia digital“. Mais tarde também é mencionada a reestruturação do capitalismo e a possível substituição do dólar como moeda mundial. Em todo o caso, a enumeração de tais fenómenos não permite obviamente a criação de um contexto social global, porque „tais fenómenos não representam a essência do estado de excepção, dada a sua profundidade e duração“. É portanto necessário – até agora tudo bem – pensar nos fenómenos juntamente com a essência que neles se apresenta. Essência que foi encontrada na „conspiração“. Isto não é uma atribuição denunciatória, mas uma linguagem clara do autor: „Sem conspiração no sentido mais amplo, precisamente as mudanças radicais estruturalmente condicionadas … não conseguem desenvolver-se“. Com a conspiração, o „autêntico“ aclarou-se a partir do matagal dos fenómenos.
É precisamente esta fasquia do „autêntico“ que Jappe não foi capaz de saltar. A sua decisiva falta no salto é „um distanciamento respeitoso“ da teoria da conspiração; afinal, ele não quer ser visto como um teórico da conspiração nem quer perder a reputação. Por isso lhe escorrega „uma frase maleável“ para o PC: „Claro que não há reuniões secretas dos super-poderosos que puxam os cordelinhos com toda a liberdade“. Rauschenbach sabe como corrigir tal maleabilidade e refere-se „muito especificamente“ a „um encontro pouco secreto de alguns super-poderosos“ em 2019, no qual „o polvo financeiro Bloomberg de Nova Iorque aliado ao China Center for International Economic Exchanges (CCIEE)“ se encarregou de tomar providências relativamente ao problema do envelhecimento da população com „promessas sociais impagáveis“. Além disso existem naturalmente „muitos desses nós de poder“.
Como seria de esperar, toda a construção se resume ao coronavírus; pois „agora, dois anos mais tarde, vemos como, sob o pretexto de uma falsa pandemia, se começou realmente a esclarecer tanto a questão das pensões como a questão das promessas sociais impagáveis, das quais o sistema de saúde é uma delas“. Com isto, „… faz muito mais sentido quando se abandona a hipótese de que a gripe rainha é uma operação dos agentes do capital total ideal e global, muita coisa se tornando mais clara quando são analisadas as maquinações de tais conspiradores da dominação e quejandos“.
O que é problemático não é simplesmente a referência aos actores e às suas reuniões, mas o significado epistemológico atribuído à conspiração. É claro que não há nenhum fetiche de dominação abstracta que se automovimente. No entanto, a estrutura fetichista da socialização capitalista da dissociação-valor, como dominação abstracta, forma o contexto por cima do qual nem mesmo os actores económicos e políticos conseguem saltar. Seria necessário partir deste contexto básico quando se trata de compreender as relações de crise e as acções dos intervenientes. Os pressupostos da teoria da conspiração já são desmentidos pelo facto de a acção uniforme não poder ter sido discernida – nem mesmo no contexto do coronavírus. Os actores poderosos na sua aliança com a indústria farmacêutica nem sequer conseguiram levar a cabo a vacinação obrigatória. As relações de crise funcionam de forma diferente. Conduzem a uma mudança confusa e cada vez mais rápida entre as familiares polaridades da economia e da política, do mercado e do Estado, e aí entre desregulamentação e re-regulamentação, liberdade e coerção, com uma tendência reconhecível para o autoritarismo. Este último, porém, não se encontra apenas entre políticos autoritários, mas também em contextos da sociedade civil, e não em último lugar na cena da conspiração e do pensamento transversal.
Uma „pilha de fermentação“ e novas alianças
O caminho do pensamento transversal leva da imaginária conspiração de uns à almejada conspiração de outros. A conspiração dos poderosos deve ser combatida por uma conspiração dos impotentes. Para isso são necessários aliados. Que se podem encontrar entre as „pessoas rotuladas como negacionistas do coronavírus“. São „os únicos a quem de algum modo é permitido nomear todos os horrores“. Aqui se incluem não propriamente poucos que se demarcam identitariamente do horror que outros experimentam nos mares, nas guerras, na destruição dos seus meios de subsistência, e que estão preocupados principalmente com o seu „horror“ sob a „ditadura da saúde“. O objectivo é pescar nas águas turvas de situações difusas de sentimento, preocupação e raiva, a fim de chegar a uma prática de resistência. Acredita-se que uma tal „pilha de fermentação“ tenha de repente uma fermentação emancipatória. Pois, apesar da fragmentação ideológica e da ausência de uma verdadeira organização, „o protesto tão crescente como confuso contra as imposições dos últimos anos está a crescer“. Além disso, „é preciso … também dizer que a estrutura de pensamento transversal explícito foi também a que mais se opôs ao estado de excepção de forma organizada e, portanto, pelo menos insinuou um perigo para o Estado autoritário“.
Tais considerações estratégicas são combatidas por aqueles que insistem na demarcação contra fantasias conspiratórias e pensamento transversal por razões de conteúdo. Eles impedem a ansiada capacidade de aliança e de acção, que vagamente quer „fazer a alguma coisa“. „Se alguém quiser alcançar algo (sic!) na rua ou mesmo na contra-esfera pública que há muito se vem formando, terá de procurar o cisma com os porteiros nas suas próprias fileiras“. Mas foi aí que Anselm Jappe ficou a meio caminho. É verdade que ele fez um esforço e também foi menos tímido do que o „meio fala-barato“ do espectro de esquerda. Mas isso não muda o facto de também ele ter saltado abaixo da fasquia. A única hipótese de ultrapassar a fasquia e sair da crítica pouco convicta, tornando „até mesmo a crítica amargamente necessária ao capitalismo novamente mais credível“, é se houver um reconhecimento ofensivo da ditadura da saúde. Assim, diga „ditadura da saúde“!
Olhando para Jappe, Rauschenbach parece estar preocupado com a questão de quem é o melhor a regredir? Em vez de visões emancipatórias visando uma ruptura com as relações capitalistas, o avanço dos processos de crise conduz a regressões que são expressão dos laços com as relações que seria preciso ultrapassar emancipatoriamente. Classes, identidades, interesses, identificações do bem e do mal, sujeitos „revolucionários“ recentemente identificados, estratégias de aliança em torno de uma „pilha de fermentação“… devem supostamente salvar da crise. Quanto menos no quadro das relações de fetiche e de crise, maior parece ser a pressão para tomar partido, para salvar a própria pele ou para mostrar, se não a vitória, pelo menos a grandeza da resistência do lado certo.
O tempo de crise empurra para o ’simples‘ e ‚manejável‘: para padrões simples de explicação até alucinações conspiratórias, para a viabilidade activista, para alianças que tragam o maior número possível para as ruas. O facto de os „de direita“ e os „de esquerda“ pensarem e agirem transversalmente não incomoda muita gente, mas é visto como uma vantagem. Perturbadores são os conteúdos – tanto mais que se opõem ao desejo de imediatidade e estão ligados à reflexão teórica. O que se procura são explicações „concretas“ e imediatamente compreensíveis, que também podem mostrar contra quem a raiva e a indignação devem ser dirigidas e descarregadas activamente. O mundo torna-se compreensível, pode ser classificado em ‚bom‘ e ‚mau‘ sem esforços teóricos complicados, que também estão ligados ao insuportável sentimento de impotência. O activismo, pelo contrário, sugere uma difusa capacidade de acção. Tem de permanecer difusa enquanto se recusar a compreender adequadamente as relações. Em comparação com a sobriedade de uma análise que procura compreender o que as pessoas sofrem no contexto das relações de fetiche, os sentimentos de auto-eficácia imediata já são mais reconfortantes, especialmente o sentimento afirmativo de poder „fazer alguma coisa“ numa contra-esfera pública que se está a formar – em combinação com a consciência de estar do lado correcto, do lado moralmente bom dos „afectados“. E aqueles que estão do lado bom, que são eles próprios „afectados“ ou pelo menos se imaginam como defensores dos „afectados“, podem também sentir-se capacitados para implementar e impor o „bem“ de forma autoritária.
Fabio Vighi2 prova que em toda esta ‚contorção‘ também existem híbridos transversais. No seguimento de Robert Kurz, ele analisa os desenvolvimentos do capitalismo financeiro com tentativas de compensar a crise de valorização do capital. Para o que foi necessário mobilizar massas gigantescas de „dinheiro sem valor“. Através de um circuito de pseudo-acumulação, o dinheiro pôde fluir para a produção e o consumo. Este circuito, em crises financeiras que se agravam combinadas com a crise deflacionária da dívida e com a estagflação, corre para a actual situação, cuja superação ou estabilização é „praticamente impossível“. Até agora, a análise é compreensível e esclarecedora. Ao mesmo tempo, porém, é precisamente aqui que ocorre a regressão para alucinações conspiratórias. As elites reconheceram a desesperança de poder gerir a crise economicamente. Covid e guerra na Ucrânia estão a ser utilizadas e alimentadas pelas elites para prolongar mais uma vez a crise do capitalismo e para a controlar por meios autoritários. Também no trabalho de Vighi encontramos um deslocamento epistemológico, da questão da dominação abstracta e das acções dos intervenientes nela embutidas para a imediatidade do conhecimento e da acção intencional das elites.
Um „culto da imediatidade”
Tudo isto é apoiado por uma fixação na imediatidade, que não quer ou não consegue captar fenómenos individuais nos seus contextos sociais ou, movida por uma dependência do suposto „concreto“, imagina o contexto social como uma conspiração. É aqui que se paga pelo pragmatismo „cultivado“ durante décadas, com o qual a reflexão sobre contradições sociais e contextos de crise foi banida do pensamento. Encontra expressão, entre outras coisas, na hostilidade à teoria –estruturalmente anti-semita – e no ódio aos intelectuais que não conseguem formular contextos complicados de forma simples, ou seja, geralmente personalizada e manejável.
Está a espalhar-se regressivamente um „culto da imediatidade“ (Günter Frankenberg) contra a questão da mediação dos fenómenos da crise com a totalidade social das relações fetichistas, cujo cerne é que a sociedade como um todo está sujeita ao fim-em-si irracional e vazio da multiplicação do capital, sendo ao mesmo tempo dissociadas como inferiores as áreas da reprodução. Só é possível abrir horizontes para uma prática emancipatória através do conhecimento da mediação do que as pessoas sofrem globalmente e em contextos globais com estas relações, com a constituição categorial das relações capitalistas em valor e dissociação, produção e reprodução, em trabalho e dinheiro, economia e política, bem como no sujeito que é seguro de si mesmo e da sua capacidade autónoma de agir, que é auto-suficiente e que no seu narcisismo perde a referência aos objectos e, portanto, aos conteúdos. Nada do que é alucinado em falsa imediatidade é ‚concreto‘, mas adere a um pseudo-concretismo. Algo só se torna concreto quando é compreendido nos seus contextos constituintes. Uma prática emancipatória só pode afirmar-se quando, entendendo, se abalança a negar as relações irracionais e abstractas de dominação, que na sua dinâmica destrutiva se tornam visíveis nos fenómenos de crise.
Se este for o ‚dogmatismo‘ da exit!, significará ligá-la à determinação do conteúdo da crítica das relações de fetiche capitalistas, que estão à disposição no seu conjunto, juntamente com a questão de uma prática emancipatória. Estas relações devem ser entendidas não estaticamente, mas processualmente. Por conseguinte, não pode haver uma crítica que se mantenha de vez e da qual se possa deduzir alegremente à maneira da lógica da identidade. A crítica tem de reflectir sobre os processos, especialmente os acelerados processos de crise que estão a conduzir à destruição global, em termos da sua mediação com a totalidade social, tendo em conta os diferentes níveis de mediação, desde os níveis económicos aos psicossociais, e ao mesmo tempo pensar contra si mesma. Um tal „dogmatismo“ implica, a partir do conteúdo de que trata, a demarcação das diversas formas de pensamento transversal e conspiratório bem como da sua „miscelânea“. Por isso a exit! não dirá „ditadura da saúde“ nem entrará na competição para ver quem é o melhor a regredir.
Herbert Böttcher – Tradução de Boaventura Antunes
- Cf. Karl Rauschenbach: Einige Anmerkungen für halbschwurbelnde Linke, die künftige Gesellschaftskritik betreffend [Notas para esquerdistas meio fala-barato sobre a crítica social futura], 23.8.2022, https://magma-magazin.su/2022/08/karl-rauschenbach/einige-anmerkungen-fuer-halbschwurbelnde-linke-die-kuenftige-gesellschaftskritik-betreffend/. Todas as citações são retiradas deste texto, salvo indicação em contrário.
- Cf. Fabio Vighi: Pause for Thought: Money without Value in a rapidly disintegrating World, 30.5.2022, https://thephilosophicalsalon.com/pause-for-thought-money-without-value-in-a-rapidly-disintegrating-world/.