Senhor Kant, tenha piedade de mim! Deus em julgamento na crise do coronavírus

As catástrofes associadas aos processos de crise não são manifestamente suficientes para levantar a questão de Deus e do sofrimento em teologia. Para isso foi necessário o coronavírus. No artigo „Sr. Kant, tenha piedade de mim! Deus em tribunal na crise do coronavírus“, Herbert Böttcher trata das interpretações teológicas da pandemia de coronavírus, bem como da sua „realização“ em termos de ética afirmativa. A chamada questão da teodiceia foi abordada pelo teólogo Markus Striet. Aqui se mostra, mais uma vez, a miséria de uma teologia que afirmativamente se liga ao iluminismo e ao seu pathos de liberdade. Não é por acaso que a razão prática de Kant constitui o seu ponto de referência central. Na acção prática, o sujeito encontra a pretensão incondicional de agir moralmente. Surge da razão, que é autónoma face à natureza e às cadeias causais de acção. Tal incondicionalidade da obrigação moral está ligada à liberdade de escolha, à liberdade da vontade. O dever e a liberdade estão fundados „para lá“ das determinações históricas, temporais e relacionadas com o conteúdo. 

Para os teólogos e teólogas, a ‚razão prática‘ é atractiva porque Deus, banido da razão pura metafísica, é usado como postulado para a acção moral. Sem ele toda a ética entraria em colapso, uma vez que lhe faltaria uma autoridade julgadora que recompensasse a boa acção e sancionasse a má acção. Só assim a moralidade e a felicidade se podem juntar e Deus encontrar piedade pelo menos como „suplente“ perante a cadeira de juiz de Kant.

Os teólogos e teólogas sentem a oportunidade de ter uma palavra a dizer „à altura do seu tempo“, mas falam fora do que estaria ‘a tempo’: a crítica categorial do capitalismo e das suas relações de crise, que estão a mergulhar cada vez mais pessoas no sofrimento e na morte. O coronavírus exacerbou isso. Isso dificilmente cai no campo de visão de uma ética orientada por Kant ou de uma teologia nela baseada. A sua miséria reside na fundamentação do pensamento em formas puras. As condições a criticar são pressupostas como „normalidade“ afirmada. A teologia permanece na ‚tarefa‘ que lhe é atribuída: ajudar as pessoas a lidar com a vida, em ligação com o mundo tal como ele é. A alternativa a isto seria uma teologia de crítica social, à qual é inerente uma referência à teoria crítica da sociedade.  (Apresentação do texto na exit! nº 19, 2022)

 Nota prévia * 1. A crise do coronavírus e a questão de Deus * 2. As ciências e Deus * 3. A teologia perante o tribunal da modernidade * 4. A graça da ‘razão prática’ * 4.1 A autonomia do moral como forma metafísica pura * 4.2 Teólogos em busca de graça para Deus no tribunal de Kant e a desgraça das condições * 5. A liberdade de Magnus Striet … * 6. … e o „imperativo categórico“ real associado a esta liberdade * 7. „Ora diga lá o que pensa da religião?“ (Goethe) * 8. A teodiceia em foco: „Questionar Deus“ face ao sofrimento (Metz) – ou antes pedir conselho a Kant (Striet)? * 8.1 Deus perante o tribunal moral de Kant * 8.2 O formalismo cega – ‘Questionamentos’ a um pensamento em ‘formas puras’ * 8.2.1 Um conceito de Deus vazio de conteúdo * 8.2.2 Às vezes desta maneira, às vezes daquela, … formalmente vale tudo * a) O homicídio como cumprimento do dever * b) Ou antes ‘democracia radical’ com „teologia política ’segundo‘ o pós-modernismo“? * 9. A teodiceia na teologia sócio-crítica como „questão da salvação dos que sofrem injustamente“ * 10. Pathos afirmativo da liberdade versus negação sócio-crítica * 11. Considerações finais: O apelo à liberdade na crise do coronavírus

Nota prévia

Ao usar o conceito de Deus tem de se contar com a dificuldade de este desencadear associações muito diferentes, e também não ser conceptualmente inequívoco. Para o presente texto é importante distinguir entre um conceito metafísico de Deus – tal como cristalizado no contexto da filosofia helenística – e a memória bíblica de Deus. O conceito metafísico de Deus permanece universal, na medida em que abstrai da história e pretende ser válido para todos os humanos e para todos os tempos. Permanece formal e, mesmo nas suas predicações de Deus como origem e objectivo, como bem supremo […], não vai além de determinações supostamente intemporais.

Pelo contrário, a memória bíblica de Deus, que deve as suas origens ao pensamento hebraico, está constitutivamente ligada à história, especialmente ao que os povos têm de sofrer sob a dominação na história, e à busca da libertação da dominação. Daí resulta o conteúdo desta memória de Deus. Esta memória de Deus recordada na tradição judaico-cristã também reivindica universalidade, no sentido em que o seu conteúdo de libertação pode ser importante para todos. Contudo não ganha a universalidade assim entendida por abstrair da história e se articular em termos gerais supostamente a-históricos e intemporais, mas por procurar a libertação tendo em conta relações de dominação historicamente diferentes. O discurso de Deus ligado a esta memória permanece „sensível ao sofrimento e ao tempo“ (J. B. Metz) na história. A sua pretensão universal de verdade, porque se dirige a todos, representa a ultrapassagem das relações de dominação e a salvação daqueles que delas são vítimas. Da sua salvação depende a esperança da salvação de todos, numa vida „para além“ das relações fetichizadas. A pretensão de verdade associada a isto não pode ser assegurada em termos de lógica da identidade, mas depende do facto de a libertação e a salvação se tornarem realidade.

 

  1. A crise do coronavírus e a questão de Deus

O coronavírus depara-se com uma sociedade capitalista marcada por uma crise cada vez mais intensa e imanentemente inultrapassável. O facto de nela morrerem pessoas e de serem destruídos os fundamentos naturais da vida faz parte da „normalidade“ desta sociedade, não causando normalmente grande irritação. O coronavírus interrompeu esta normalidade.

Os teólogos e teólogas foram forçados a questionar o sentido e até a questionar Deus, face ao sofrimento que subitamente parecia ter-se abatido sobre a sociedade. De repente eles e as suas respostas voltaram a ser procurados, como se não tivesse havido sofrimento sob o mortal absurdo das condições anteriores ao coronavírus. O que foi trazido à luz teologicamente revelou a miséria da teologia dominante, que consiste no facto de não formar um conceito crítico das condições para as quais tenta falar, mas antes se adaptar às condições – psicologizando e existencializando apaziguadoramente.

 

A questão de Deus e do sofrimento é discutida em teologia como a chamada questão da teodiceia. O termo „teo-diceia“ deriva do grego θεός (Theos) para Deus e δικάζω (dikazo) para „declarar o direito“, „julgar“. A questão da teodiceia toca o nervo da teologia na medida em que pergunta se ainda é possível falar de Deus perante um mundo e uma história cheios de catástrofes. Quem responde afirmativamente a esta pergunta não pode de modo nenhum fazê-lo de costas para tais catástrofes. Quando a questão da teodiceia se apresenta como a questão teologicamente mais sensível, a teologia adere largamente a Kant e à sua „razão prática“. No formalismo do pensamento de Kant, desaparece um conceito de Deus determinado pelo conteúdo das tradições bíblicas e conotado com uma crítica da dominação, e com ele a referência a uma história de sofrimento sob opressão e violência, que é constitutiva das tradições bíblicas.

Já a origem grega do termo pode indicar a mudança que ocorre no problema quando a questão da „justificação de Deus“ (ou do discurso sobre Deus) face ao sofrimento é separada da sua ligação com o pensamento crítico da dominação e reflectida no horizonte da razão prática de Kant: não são as condições mortíferas e sem sentido que estão então „em julgamento“, mas „Deus“ ou o que resta dele como postulado da razão prática. Não são as condições que causam sofrimento que devem ser „justificadas“. O que deve ser „justificado“ é a razão pela qual a crença num „ser supremo“ a ser postulado pode ainda ter sentido, tendo em conta o progresso científico e a ultrapassagem do sofrimento humano que lhe está associada, porque, apesar de todo o progresso, ainda há restos de sofrimento não resolvido. (1)

Este texto pega numa entrevista feita pela Deutschlandfunk ao teólogo de Freiburg Magnus Striet (cf. Striet 2020). Para além do instantâneo, ele deixa claro como a teologia moderna afirma o capitalismo e as suas condições de crise sem reflexão e, ao mesmo tempo, com o seu vago discurso sobre Deus (como um „ser superior“), quer dar um contributo para aliviar as pessoas do fardo de lidar com as contingências dolorosamente experimentadas da vida. O caminho passa por Kant e por empréstimos da teoria dos sistemas. (2)

O texto que segue parte assim da entrevista de Striet à Deutschlandfunk e aborda depois um texto de Striet sobre a questão da teodiceia (Striet 1998), no qual ele confronta o seu pensamento teológico com a abordagem da teologia sócio-crítica de Johann Baptist Metz. Num último passo, esta teologia sócio-crítica, por seu lado, é de novo analisada a partir do contexto da crítica da dissociação-valor.

 

  1. As ciências e Deus

Na entrevista, Striet é confrontado com o facto de as igrejas terem aceitado as restrições relacionadas com o coronavírus nos seus serviços e na vida religiosa como algo natural. Striet salienta que na Igreja „passaram por um processo de aprendizagem […] e simplesmente aceitaram o conhecimento e os complexos de conhecimento científicos“ (Striet 2020). Por isso, a Igreja submete-se às restrições que lhe são impostas, ao ponto de limitar os seus serviços. Tendo como pano de fundo os conflitos históricos entre a Igreja e a ciência, Striet avalia o facto de esta „aceitar o conhecimento especializado“ como uma „vitória da razão“. (3) Esta está ligada ao „progresso científico e técnico“, incluindo o progresso da medicina. Sem este progresso, „a grande maioria das pessoas […] não poderia viver até esta idade no século XXI“.

Striet considera que „é claro […] que as ciências têm sempre limites“. Elas coexistem com o progresso como „consequências da tecnologia“. No entanto, tendo em conta os seus limites, também é verdade que „entram no aberto, também correm riscos“. Para ele as consequências e os riscos tecnológicos são obviamente tão „naturais“ que é supérflua qualquer questão sobre a „segunda natureza“, ou seja, sobre a constituição da sociedade no contexto da qual ocorrem „riscos e efeitos secundários“. As questões que surgem no processo permanecem sem referência social. Têm de ser „decididas filosófica e eticamente“. O pano de fundo para isto – como se tornará claro neste texto – é uma reflexão filosófico-ética que, com base na „autonomia da moral“ de Kant, só com dificuldade pode estabelecer uma referência a uma heteronomia que anda de mãos dadas com a já sempre irreflectidamente pressuposta submissão à „segunda natureza“.

As cínicas interpretações teológicas de „males físicos e catástrofes naturais como castigo de Deus“ são rejeitadas e assim justificadas: „São simplesmente processos que ocorrem na evolução e não têm nada, mas mesmo nada a ver com a acção de Deus“.

Deus e, portanto, a teologia só entram em jogo „quando se trata de interpretar o todo, ou seja, quando se coloca a questão: Como pode acontecer algo como o que podemos observar neste momento? É aí que entra o famoso problema da teodiceia. Mas antes disso, diria eu, tudo isto são lógicas que têm de ser consideradas dentro do respectivo sistema – e para mim a teologia não é responsável por elas“.

Mas „se alguém leva a sério a ideia de um Deus criador, então terá de dizer que tudo o que acontece aos humanos na evolução também tem de ser respondido por ele“. E assim não se poderá „exonerar os crentes em Deus da questão: Porquê esta miséria?”

 

  1. A teologia perante o tribunal da modernidade

Salta à vista que as afirmações de Striet se situam no horizonte que a modernidade atribuiu à religião. O qual quebrou a ligação entre religião e sociedade, entre vida religiosa e vida social. Com a separação entre espaço público e espaço privado, a religião foi remetida para o domínio do privado. A teologia moderna aceitou de bom grado este lugar que lhe foi atribuído, concentrando a sua reflexão nas experiências religiosas da vida privada. Esta „privatização“ da fé e da teologia foi uma tentativa de compensar a perda de significado público da religião desencadeada pela modernidade, assegurando o seu significado no privado.

No entanto, não foi apenas a relevância da fé, da Igreja e da teologia a entrar em crise, mas também a justificação da fé. Os seus fundamentos ontológico-metafísicos entraram em necessidade de justificação, tendo em conta a „Crítica da Razão Pura“ de Kant. Segundo Kant, o conhecimento de Deus como realidade a pensar transcendente escapa às possibilidades cognitivas da razão teórica. As suas objecções podem ser descritas, grosso modo, assim:

„Os objectivos mais elevados da razão pura“ são as questões: „Há um Deus? Há uma vida futura“ (Kant 1976, B 831/A 803). A razão especulativa falha nestas questões. Não pode provar a existência de Deus – como a prova ontológica de Deus tinha tentado com a sua conclusão da „ideia mais perfeita“ da razão para a existência de um ser mais perfeito. Esta conclusão é – de acordo com a argumentação de Kant – logicamente inadmissível, uma vez que o ser atribuído a Deus não é um predicado, ou seja, não tem qualquer determinação de conteúdo. A existência de Deus não pode, assim, ser deduzida analiticamente. Portanto, a existência de Deus não pode ser inferida com necessidade a partir de um ser imaginado de Deus. Se o que é pensado é correctamente pensado, ou seja, se uma ideia da razão pura corresponde a uma realidade, teria primeiro de ser provado. O argumento ontológico permanece numa esfera puramente conceptual, sem poder fazer uma afirmação sobre a realidade. Uma vez que a proposição „Deus é“ é uma proposição sintética, a existência de Deus com ela afirmada falha, devido à impossibilidade de provar a priori que as proposições sintéticas são verdadeiras.

Também as provas cosmológicas e teleológicas de Deus baseadas na experiência são obsoletas. A prova cosmológica de Deus conclui da experiência da existência do mundo para uma causa. A prova teleológica de Deus ascende da experiência da intencionalidade a um objectivo supremo, bem como a uma causa suprema que tudo ordena. Segundo Kant, o pensamento cosmológico chega a um ser necessário, mas não pode mostrar conclusivamente que esse ser necessário é também Deus, isto é, o ser perfeitíssimo (ens perfectissimum) e realíssimo (ens realissimum). A prova teleológica de Deus, porque no mundo não se experimenta apenas a ordem, mas também a desordem, só pode conduzir a um construtor do mundo muito sábio, mas não omnisciente. Mas sobretudo: se quiser concluir do construtor do mundo e da sua ideia de plano para um verdadeiro criador de um mundo real, depara-se de novo com a aporia que já foi mostrada na prova ontológica de Deus: Não é possível concluir de uma ideia da razão para a sua realidade.

 

  1. A graça da ‘razão prática’

No entanto Deus, banido das esferas da ‚razão pura‘, encontra graça perante o tribunal da ‚razão prática‘. Depois de as questões da metafísica se terem deparado com os limites de uma justificação no horizonte da ‚razão pura‘, há agora uma reorientação metodológica das questões centrais da metafísica da ‚razão pura‘ para a ‚razão prática‘, por assim dizer como instância para testar a viabilidade da reflexão metafísica: „Ora, resta-nos ainda um ensaio a fazer, ou seja, procurar se a razão pura pode também encontrar-se no uso prático, se neste uso nos conduz às ideias que atingem os fins supremos da razão pura, acabados de indicar, e se esta, portanto, do ponto de vista do seu interesse prático, não poderia conceder o que nos recusa totalmente do ponto de vista do uso especulativo.“ (ibid., B 832/A 804). Quando a razão pura se depara com os seus limites, surgem as famosas interrogações de Kant: „1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me é permitido esperar?“ (ibid., B 832s./A 804s.). Nelas se conjugam o interesse especulativo e o interesse prático da razão. A terceira questão sobre a esperança torna-se a chave para as outras questões. Ela „é ao mesmo tempo prática e teórica“ (ibid., B 833/A 805). Isto torna-se claro quando Kant a formula na pergunta: „Se faço o que devo, que me é permitido esperar?“ Kant diz: „Toda a esperança tende para a felicidade“ (ibid.). O que podemos fazer perante esta esperança é mostrarmo-nos dignos da esperança de felicidade, ou seja: „Faz o que pode tornar-te digno de ser feliz“ (ibid., B 836s./A 808s.).

Aqueles que agem de acordo com as leis morais provam ser dignos da „felicidade“. Podem esperar a recompensa através da „felicidade“. A acção moral e a esperança da razão de ser recompensada com a merecida satisfação estão ligadas através do „ideal do sumo bem“ (ibid., B 839/A 811). Este ideal é necessário porque a acção moral não pode recompensar-se a si própria. Isto estaria ligado à condição, negada pela experiência, de que todos façam um uso razoável da sua liberdade de acordo com as leis morais. Mas „nem a partir da natureza das coisas do mundo, nem a partir da causalidade das próprias acções e da sua relação com a moralidade“ se pode determinar „como as suas consequências se reportam à felicidade“ (ibid., B 838/A 810). Por isso, „só se pode esperar conhecer se uma razão suprema, que comanda segundo leis morais, for posta ao mesmo tempo como fundamento enquanto causa da natureza“ (ibid.). A moralidade e a felicidade só se podem conjugar se pressupusermos ou postularmos „um sábio autor a governar“ (ibid., B 839/A 811). „A razão vê-se forçada a admitir um tal criador, assim como a vida num mundo que temos de encarar como futuro, ou a considerar as leis morais como vãs quimeras, pois a consequência necessária que a razão vincula a essas leis, sem estes pressupostos, está condenada a desaparecer“ (ibid.).

A Deus, que não pôde encontrar graça perante a „razão pura“, é dado um lugar misericordioso como postulado, como paliativo no sistema da „razão prática“. Se esta lacuna ficasse vazia toda a moralidade cairia por terra, pois as „leis morais“ seriam apenas „fantasias vazias“. E assim Deus, banido da „razão pura“, migra para a moral. Sem ele, as leis morais não poderiam ser entendidas como mandamentos para todos, pois não poderiam estar ligadas a „promessas e ameaças“ (ibid.). Kant é gracioso para com Deus porque ele é necessário como juiz supremo em questões de moralidade para preencher uma lacuna na „razão prática“. Ao mesmo tempo a metafísica é refundada como uma „metafísica da moral“ e da acção moral.

 

4.1 A autonomia do moral como forma metafísica pura

A moral kantiana vê-se a si mesma como uma moral autónoma. A sua base é a autonomia do moral. Ela manifesta-se na incondicionalidade do dever e da liberdade. A incondicionalidade do dever resulta da autonomia da razão em relação à natureza e às cadeias de causalidade que surgem através da acção. „Por muitas que sejam as razões naturais que me impelem a querer e por mais numerosos que sejam os móbiles sensíveis, não poderiam produzir o dever“ (ibid., B 577/A 549). O fundamento do dever e, por conseguinte, a incondicionalidade da sua pretensão, não provém nem da natureza humana nem das condições mundanas, mas a priori da „razão pura“: „Este dever exprime uma acção possível, cujo fundamento é um simples conceito“ (ibid., B 575/A 547). Por isso, a razão – autónoma dos contextos empíricos e das inclinações físicas – pode „fazer para si mesma, com total espontaneidade, a sua própria ordem segundo as ideias“, „na qual encaixa as condições empíricas“ (ibid.). A incondicionalidade do dever implica, por sua vez, a liberdade de escolha e, portanto, a liberdade da vontade. No uso da sua razão prática, os humanos descobrem que essa liberdade enquanto liberdade moral de escolha é dada como um „facto“ na sua experiência. Esta impõe a ideia de liberdade como uma suposição necessária. Sem a ideia de liberdade não pode haver acção moral. No entanto não tem a sua base em fenómenos „factuais“, mas como um a priori na própria razão. Tal como ao dever, à liberdade é atribuído o carácter de incondicionado e, portanto, de absoluto. Encontra a sua realização na „vontade pura“. A que corresponde o „entendimento puro“. Tal como este último sozinho produz categorias a partir de si mesmo, a „vontade pura“, enquanto „boa vontade“, produz uma acção moralmente boa. É „não pelo que produz ou realiza, não pela sua adequação à prossecução de um fim predeterminado, mas apenas pelo querer, que é boa em si mesma“ (Kant 1978, BA 3). Isto não estabelece quaisquer mandamentos e proibições no que respeita ao conteúdo, mas uma lei moral puramente formal, o dever, a obrigação „enquanto tal“. Tendo em conta a incondicionalidade do dever, não pode haver imperativos condicionais, ou seja, imperativos ligados a condições de conteúdo, mas apenas o imperativo categórico. Este aplica-se de forma geral, ou seja, independentemente das condições de conteúdo e temporais-históricas. O seu único critério é um critério formal: o da generalizabilidade. „Se um ser racional deve pensar nas suas máximas como leis gerais práticas, só pode pensá-las como princípios que contêm o determinante da vontade não na matéria mas apenas na forma“ (ibid., A 48). Um imperativo é considerado um mandamento moralmente vinculativo se for susceptível de generalização.

A incondicionalidade do dever e da liberdade fundam-se metafisicamente na ideia de uma liberdade que se caracteriza pelo facto de ser autónoma em relação à realidade material. Assim, o dever e a liberdade são autónomos porque se fundam „para além“ das determinações de conteúdo, temporais-históricas. Como „incondicionados“, têm de permanecer livres do condicionado, de qualquer conteúdo material. Só enquanto forma pura é que a sua incondicionalidade pode ser preservada. A incondicionalidade da liberdade corresponde à incondicionalidade do imperativo categórico, enquanto mandamento puramente formal e assim incondicional. A incondicionalidade da razão pura aparece no domínio da razão prática e torna-se efectiva na acção moral.

A chamada „viragem copernicana“ de Kant para o primado da práxis na filosofia (Metz 2016, 75) mais não é do que uma tentativa de refundar a metafísica através da „razão prática“ sob a forma da incondicionalidade do dever e da liberdade. Este formalismo sem tempo e sem história do dever e da liberdade implica a divisão entre forma pura e empiria, entre o formalmente incondicionado e o materialmente condicionado, entre o que é categoricamente incondicional e o que é hipoteticamente condicional. Mas uma forma pura de empiria, uma forma do incondicionado limpa das condições da materialidade, do tempo, da história, do conteúdo não pode existir no mundo real. As pessoas não podem realmente viver nas esferas abstractas da obrigação pura e da liberdade pura, mas apenas em condições reais. Por isso o dever puro de Kant pressupõe sempre uma „lei moral“ real, determinada no conteúdo, e a „ideia“ de liberdade de Kant pressupõe sempre um lugar social real. Historicamente esta é a sociedade real do capitalismo em constituição. A sua materialidade, no entanto, não encontra acesso na forma pura do dever e da liberdade. Ela surge sempre apenas depois como uma lei moral factual, como liberdade no quadro das condições factuais pressupostas.

As formas puras de dever e liberdade de Kant tornam-se categorias com as quais o sentido do dever é inculcado „em si mesmo“. No entanto, o verdadeiro dever não pode ser tornado real, “realizado” „em si mesmo“, mas apenas em ligação com um objecto material. O estabelecimento desta ligação é deixado ao „senso comum“, „ao entendimento comum“ (Kant 1976 B 859/A 831); pois aquilo que „diz respeito a todos os seres humanos“, o cumprimento dos deveres, não pode „transcender o entendimento comum“ (ibid.). Está ligado à lei moral, que por sua vez é „comum“, ou seja, universal, e reivindica validade incondicional para todos. A metafísica da obrigação de Kant não estabelece, portanto, uma moralidade substancialmente nova, mas refere-se à moralidade vigente como lei moral geral. A obrigação moral não está interessada na justificação ou mesmo na crítica da moralidade ou do moral, e muito menos das relações conexas, mas obriga à moralidade vigente, pressupondo-a assim sem justificação ou crítica, juntamente com as relações com que anda de mãos dadas. O imperativo categórico permanece como o único critério de acção moral. Mas também ele permanece formal e vazio de conteúdo, como princípio de generalização da respectiva acção. Isto equivale a inculcar a moralidade como um cumprimento vazio do dever cujo conteúdo permanece indeterminado. E não é por acaso que esta „moral vazia“ viu a luz do dia numa altura em que se impunha a „forma vazia da sociedade“ do aumento do capital por amor de si mesmo. Com esta moral vazia, mesmo o assassínio em massa – como mostram os exemplos de Eichmann e Himmler (cf. 8.2.2a) – pode então ser interpretado como expressão do cumprimento do dever e legitimado com o imperativo categórico.

 

4.2 Teólogos em busca de graça para Deus no tribunal de Kant e a desgraça das condições

Os teólogos que, como Magnus Striet, seguem a doutrina da liberdade transcendental de Kant assumem a incondicionalidade formal da liberdade. Para Striet a liberdade é „concebida como um comportar-se incondicional, um abrir-se ilimitado em relação a um conteúdo possível e um decidir-se original a favor de um conteúdo“ (Striet 1998, 67). Uma vez que Striet sabe, pela tradição filosófica e teológica, que forma e matéria não podem existir separadamente uma da outra em termos reais, tal como natureza e graça, também é claro para ele que a „incondicionalidade formal da liberdade“ que descreve só „existe […] se já se determinou e determina a si própria através da afirmação real de um conteúdo“ (ibid.). A liberdade a ser „executada“ pelo ser humano encontra-se na „facticidade do seu ser como liberdade“ (ibid.), fundando-se assim na „razão prática“. Nela, a metafísica encontrou o seu fundamento transcendental e pôs os pés na terra. Ela encontrou a „graça“ na razão prática e com ela Deus, banido da razão pura e agora postulado na razão prática.

O conteúdo da „execução da liberdade“ só aparece enquanto „afirmação real de um conteúdo“ (ibid.). No entanto mesmo uma metafísica „prática“ da liberdade não precisa de se preocupar mais com determinações de conteúdo. Estas apenas têm de ser pressupostas em termos práticos reais. Deste modo, porém, a ruptura no pensamento, que se mostra como uma ruptura entre forma e matéria, reflexão teórica e empiria, não pode ser categorialmente cimentada. Pelo contrário, ela produz-se na prática irreflectidamente como afirmação do conteúdo do dado, ou das condições em que a liberdade tem de se executar.

A execução da liberdade está ligada ao sujeito, à sua autonomia e autoconsciência. A unidade da autoconsciência no sujeito também não conhece nenhuma determinação de conteúdo. Permanece formalmente reduzida à definição de uma unidade ou regularidade necessária dos fenómenos. Com isto, porém, o objecto fenoménico – apesar da insistência de Kant na „coisa em si“ – desapareceu no sujeito. Segundo Theodor W. Adorno, o „curso da reflexão epistemológica“ tende a „reconduzir cada vez mais a objectividade ao sujeito“ (Adorno 2003, 178 [113]). Por detrás das contradições do pensamento Adorno reconhece as contradições sociais. Por isso a crítica epistemológica e a crítica social não podem ser separadas uma da outra. No que diz respeito ao sujeito cognoscente, Adorno formula: „O conceito aporético do sujeito transcendental, de um não-ente que, contudo, deve agir, de algo universal que deve, não obstante, experimentar algo particular, seria uma bolha de sabão que não se poderia jamais criar a partir da conexão autárquica imanente de uma consciência necessariamente individual […]. Para além do círculo mágico da filosofia da identidade, o sujeito transcendental pode ser decifrado como a sociedade inconsciente de si mesma“ (ibid., 178 ss. [114]). Seria, pois, importante tornar visível na universalidade do sujeito transcendental a universalidade do todo enquanto contexto social funcional. Ela „não é uma simples auto-exaltação narcisista do eu, nem a hybris de sua autonomia, mas ela tem sua realidade na dominação que se impõe e eterniza por meio do princípio de equivalência“ (ibid., 180 [115]). Nas „abstracções do pensamento“ tornam-se reconhecíveis as „abstracções da realidade“ em que se baseiam.

Segundo Adorno, a socialização capitalista abstracta real é determinada pela „dominação universal do valor de troca sobre os seres humanos“ (ibid.). Contra Adorno, no entanto, seria preciso fazer notar que o princípio da troca ainda não caracteriza suficientemente a socialização capitalista. O princípio da troca centra-se na troca de mercadorias e no princípio de equivalência que lhe está associado, ou seja, move-se ao nível da circulação de mercadorias. Pelo contrário, o valor (de troca) teria de ser determinado a partir da unidade de produção e circulação, segundo a qual o valor a ser trocado é produzido através do dispêndio de trabalho abstracto e realizado na troca (cf. Kurz 2012, cf. também Kurz 2004a). Uma vez que Adorno, devido à sua insistência numa dominação do valor de troca desligada da dominação do trabalho, não avança para uma crítica do trabalho como substância do valor (de troca), o trabalho também permanece „numa sociedade verdadeira“ – apenas „verdadeiramente“: „ninguém teria o rendimento do seu trabalho reduzido“. Por conseguinte, „a troca não seria apenas suprimida, mas realizada“ (Adorno 2003, 291 [186]). Tal como o trabalho, também a troca se tornaria „verdadeira“. Mas sem a ultrapassagem da troca e do trabalho, não é possível criar uma „sociedade verdadeira“. Ela permanece a falsa sociedade capitalista, porque as categorias que a determinam permanecem inquestionadas e não ultrapassadas.

No mesmo nível de abstracção que o valor (de troca), teria de ser levada em conta a dissociação dos domínios da reprodução como pressuposto tácito da produção de mercadorias, ou seja, o valor e a dissociação teriam de ser entendidos como igualmente originais e como o abrangente „princípio da forma da totalidade social“ (Scholz 2012, 199, cf. também Kurz 2004a, 39ss.). Quando não se vê a totalidade social assim entendida, torna-se invisível a metafísica real das relações capitalistas nas formas puras da liberdade, da vontade e da ética categorialmente fundadas, mas sendo ela ainda mais eficazmente pressuposta na prática. É precisamente isto que equivale a uma metafisicização das relações capitalistas reais.

A liberdade e a autonomia, tal como o imperativo categórico, são tudo menos absolutas na história real, pelo contrário, são delimitadas pela socialização da dissociação-valor. Qualquer que seja a „ideia pura“ que possam pressupor, não podem existir em termos reais sem a sua integração na metafísica real das condições. „A crítica da razão prática movimenta-se num nexo de ofuscação“ (Adorno 2003, 236 [153]). Em ligação com uma acção „que não deve ser aí nada além de mero espírito“ (ibid.), isto equivale a uma sabotagem da liberdade. „O seu suporte kantiano, a razão, coincide com a lei pura. Em Kant, a liberdade necessitaria do heterónomo. Sem algo contingente segundo o critério da razão pura, haveria tão pouca liberdade quanto sem o juízo racional“ (ibid.).

 

As ideias kantianas de liberdade, (4) autonomia e ética não só encontram limites externos, mas também limites internos nos sujeitos, na medida em que as relações sociais não permanecem externas aos sujeitos, mas são internalizadas. „Mesmo onde os seres humanos se sentem maximamente livres da sociedade, na força de seu eu, eles são ao mesmo tempo os seus agentes: o princípio do eu lhes é inculcado pela sociedade […]“ (ibid., 292 [187]). Com o seu discurso sobre a „força do eu“, que vem na sequência de Freud, Adorno constrói uma ponte para o „carácter inteligível“ de Kant. Kant deve tê-lo imaginado „muito provavelmente como o eu forte que controla racionalmente todas as suas emoções“ (ibid., 289 [185]).

Neste contexto, as formas puras de Kant e a sua autonomia ética face às inclinações naturais e somáticas tornam-se reconhecíveis como ética repressora das pulsões e como obrigações ditadas pelas necessidades sociais (cf. Späth 2011, 70s.). Nestas obrigações, por sua vez, o contexto objectivo das condições reais é articulado na consciência como o superego. A acção autónoma a partir do exame, que oculta os limites externos e internos dos sujeitos enquanto agentes da acção, abre caminho à auto-submissão como um acto de liberdade, o que, nas actuais condições de crise, pode conduzir perfeitamente à retórica neoliberal da auto-responsabilidade e da auto-optimização. O apelo à liberdade face às medidas do coronavírus também se torna reconhecível como exigência de regresso à familiar submissão à normalidade capitalista (de crise). Por trás disso está a submissão do sujeito autónomo às condições dominantes, a ser alcançada como auto-realização. O „carácter inteligível“ e a „força do ego“ não pairam acima das relações sociais como expressão de uma liberdade abstracta e de um dever abstracto, mas revelam o seu „núcleo temporal“ na sua dependência dessas relações. Kant queria resolver metafisicamente as contradições entre antinomia e autonomia recorrendo a formas puras. Isto é contrariado pela abstracção real e pela metafísica real das relações, em que a autonomia se torna heteronomia, a liberdade se torna auto-submissão, a acção moral se torna o cumprimento da obrigação para com as condições, e o imperativo categórico se torna o comando para verificar se o próprio agir está em harmonia com as relações universalmente pressupostas e assim é moral.

 

  1. A liberdade de Magnus Striet …

Magnus Striet, porque argumenta sobre o coronavírus na lógica da „incondicionalidade formal da liberdade“ (Striet 1998, 66) livre de condições sociais, já pressupôs sempre as relações capitalistas abstractas reais. O seu pensamento parece flutuar, formalmente puro e intemporal no modo do „sempre assim“, autonomamente acima das relações, mas na realidade move-se em harmonia afirmativa com estas relações, sem que as suas categorias se irritem com isso. A liberdade de Striet permanece kantianamente „vazia e do outro mundo“, enquanto „a vida real […] se desenrola como a impiedosa ‚lei natural‘ do capital e do seu infindável processo de valorização“ (Kurz 2004a, 28).

Assim o „progresso científico e técnico“ (Striet 2020) pode ser alegremente louvado e, sem se perturbar com o curso real da história e com uma visão eurocêntrica, pode-se afirmar: „A grande maioria das pessoas não poderia viver até esta idade no século XXI se não tivesse sido por esta imensa história de sucesso“ (ibid.). As referências restritivas – às „limitações da ciência: ela não pode fazer tudo“ (ibid.) ou: „Claro que as ciências também sempre têm limites, são limitadas, também vão para o aberto, também correm riscos […]“ (ibid.) – permanecem a um nível filosófico de princípio („também sempre“!) e „vazias e do outro mundo“ (Kurz 2004a, 28) perante a história real. No que diz respeito à história real, teríamos de falar do facto de o coronavírus não existir como um „vírus em si mesmo“, ou seja, não como um mero fenómeno natural, mas apenas no contexto das relações sociais com as quais coincide ou nas quais se propagou. Estas são o resultado de um progresso na história. Mas a história do progresso – como Walter Benjamin sabia – descreve o progresso na perspetiva dos „vencedores“, enquanto, especialmente para os „perdedores“ e „perdedoras“, a história do progresso se torna uma história de catástrofes (Benjamin 2015). À medida que a crise final se agudiza, a história da autodestruição torna-se cada vez mais uma catástrofe também para os „vencedores“ e „vencedoras“.

Olhando para a situação actual, a ligação do vírus à globalização capitalista torna-se clara em vários aspectos. A economia global, com o comércio global e a mobilidade global, torna-se a força motriz da sua propagação: „Não é por acaso que o norte de Itália se tornou a testa-de-ponte europeia do coronavírus. Desde a década de 1990, a Lombardia e a Toscânia têm sido a bancada de trabalho prolongada da indústria têxtil e do couro chinesa, onde os chineses são escravizados com salários de fome e as empresas chinesas arrecadam superlucros com a venda de produtos „Made in Italy“. Em nenhum lugar da Europa a China, com as suas condições de trabalho desumanas, está mais próxima“ (Weis 2020, 8). Mesmo a origem do vírus não está desligada dos circuitos de valorização do capital (Wallace et al. 2020, cf. também Wallace 2021) e da conexa destruição dos ecossistemas. Segundo Wallace et al., „pelo menos 60 por cento dos novos agentes patogénicos humanos resultam da passagem de um animal selvagem para comunidades humanas locais (antes de os bem sucedidos se espalharem pelo resto do mundo)“ (Wallace et al. 2020). Enquanto os vírus „selvagens“ são controlados pela complexidade da floresta tropical, a desflorestação e as operações extractivistas do agronegócio abrem-lhes caminho, estando eles ligados à remodelação de espaços em diferentes territórios e ordens de grandeza. Está a surgir uma nova geografia que atravessa não só as fronteiras políticas mas também as ecológicas. „A dinâmica das doenças da floresta, fonte original dos agentes patogénicos, já não se limita ao interior“ (ibid.), mas pode propagar-se pelos caminhos abertos pela globalização.

Na Europa o vírus está a atingir os sistemas de saúde, danificados pelos processos de austeridade e de economificação, sendo mais atingidos países como a Itália, onde o processo de austeridade no sistema de saúde – impulsionado também pela UE e sob pressão da Alemanha – está muito „avançado“. Nem todos estão à mercê do vírus, mas são sobretudo aqueles cujo „capital humano“ já não pode ser valorizado, ou só pode ser valorizado precariamente no contexto da crise „progressiva“ do capitalismo. O vírus encontra situações particularmente explosivas nos campos de refugiados, nos países emergentes e, mais ainda, nas regiões em colapso da periferia do ordenamento mundial capitalista, onde as pessoas vivem juntas em espaços confinados, em condições de miséria, onde nem mesmo „lavar as mãos“ e „manter a distância“ são medidas de protecção viáveis.

 

 

O coronavírus não é um castigo de Deus, (5) mas pode muito bem ser entendido como repercussão da destruição que acompanha o progresso capitalista. Para os teólogos e teólogas, seria natural juntar a questão da „teodiceia“ com a questão da „antropodiceia“, ou seja, a questão do papel que os seres humanos desempenham perante as condições em que outros sofrem. A contraposição dos termos „teodiceia“ e „antropodiceia“ retoma na teologia uma constelação de problemas em que Deus seria exonerado pelo facto de – como, por exemplo, em Agostinho – as pessoas pecadoras e o „pecado original“ serem vistos como causas do sofrimento. Inversamente as pessoas e as condições são exoneradas quando se pretende atribuir a Deus a responsabilidade pelo sofrimento. Esta deslocação para lá e para cá da questão da causalidade é expressa nos termos jurídicos teodiceia como „justificação“ de Deus e antropodiceia como exoneração „justificadora“ pelos seres humanos. (6)

Com a ligação da teologia „moderna“ à „razão prática“ de Kant, as questões da „teodiceia“ e da „antropodiceia“ são tratadas nas categorias da responsabilidade do sujeito autónomo e da sua liberdade incondicional. As relações de dominação abstracta na modernidade são sempre pressupostas afirmativamente, sendo eliminada a questão das relações de dominação, que deve ser colocada com a questão de Deus. Em vez disso, seria apropriado que a teologia colocasse hoje, com a questão da „teodiceia“, a questão da „antropodiceia“ como questão da dominação abstracta, e a relacionasse com a questão de como as pessoas e as igrejas, enquanto instituições, se comportam e se posicionam em relação a isso. Tendo em conta o dito na entrevista de Markus Striet: Em vez de se referirem ao progresso perpétuo de uma forma „justificadora“, seria importante que os teólogos, no horizonte da questão de Deus, abordassem o carácter destrutivo deste progresso no contexto da dominação abstracta e a questão da sua ultrapassagem. (7)

O entendimento de uma „liberdade que se tornou certa da sua incondicionalidade“ (Striet 1998, 61), no entanto, abstrai do historicamente condicionado. Do alto da sua incondicionalidade formal, ela sabe que está dispensada de lidar com a miséria real da história e com as suas contradições. É a base para o uso autodeterminado da liberdade ao nível da razão prática, de modo que a incondicionalidade da liberdade corresponde à incondicionalidade e, portanto, à forma pura da pretensão do dever. É verdade que Striet, apesar de toda a sua retórica sobre a liberdade e o dever na sua pureza formal, sabe que a auto-realização da liberdade na acção moral só é possível através da „afirmação de um conteúdo“ (ibid., 67). Mas este nível permanece oculto na reflexão sobre as situações históricas reais.

Por isso não é por acaso que Striet, quando questionado sobre a avaliação moral-teológica da procura de uma vacina contra o coronavírus, que poderá ter de ser encontrada com a ajuda de procedimentos biotecnológicos eticamente questionáveis, responde: „Basicamente sou da opinião de que não existem abordagens primariamente teológicas a estas questões, mas que todas estas são questões que têm de ser decididas filosoficamente, eticamente. E os teólogos e teólogas podem depois ter talvez uma outra perspectiva sobre este tema […]“ (Striet 2020). Ao referir-se à falta de „abordagens primariamente teológicas“, Striet quer deixar claro que não pode haver uma resposta teológica imediata à questão ética levantada. De um modo geral, isto não é errado, à partida. No entanto, a teologia pode muito bem exprimir-se sobre esta questão, se não ficar supostamente no espaço de uma „teologia pura“, mas, em ligação com a teoria sócio-crítica, adquirir as competências para poder contribuir com algo para a questão. Por conseguinte, não deve permanecer em „si mesma“, nem procurar refúgio na ética, que está orientada para a procura de uma mediação com as condições criticáveis. O problema é, mais uma vez: as questões teológicas e sócio-críticas estão mal unidas.

Uma diferente perspectiva é sugerida pelo pensamento expresso nas tradições bíblicas. Nelas falar de Deus está ligado à história real, como história de sofrimento sob a violência associada a diferentes sistemas de dominação. O nome bíblico de Deus, que é revelado e transmitido nestes contextos, não é conceptualmente definível como um nome que transcende a história, mas está ligado a conteúdos para os quais são constitutivas a escuta dos gritos do sofrimento sob condições de opressão e violência, bem como a negação da dominação e a procura de vias de libertação da dominação. Isto não define uma „abordagem primariamente teológica“ das questões éticas ou histórico-sociais, a partir da qual se poderiam deduzir despreocupadamente perspectivas éticas ou mesmo sócio-críticas. A teologia não é poupada ao caminho da mediação com a crítica social. Mas para isso teria de ser – como bem diz Striet – „teologia da revelação, contemplação de toda a realidade sub specie Dei seipsum relevantis“ (Striet 1998, 55) (isto é, do ponto de vista do Deus que se revela, HB), ou, por outras palavras, sob as perspectivas de conteúdo em que são transmitidos os conteúdos da memória judaico-cristã. E também eles não podem ser „obtidos“ sem os contextos históricos em que são transmitidos.

Neste sentido, a „teologia da revelação“ só pode falar de Deus na forma como ele se „revelou“ segundo os testemunhos bíblicos, eles próprios historicamente condicionados, no meio das condicionalidades da história real. Uma „teologia da revelação“ assim entendida é impedida de escapar da história real para algo puramente absoluto que paira acima dela, um incondicionado só acessível em formas puras. Assim continua a não ter um „acesso primariamente teológico“ à realidade histórica. O acesso a ela passa por uma teoria crítica da sociedade, no âmbito da qual a situação histórica se torna reconhecível, na qual a memória associada ao nome de Deus deve ser explicitada. Isto significa, no que diz respeito ao coronavírus: estamos perante uma situação em que o coronavírus coincide com a crise do capitalismo, de modo que o „acontecimento da infecção“ é mediado pelo „acontecimento da crise“ capitalista, do qual não há saída na imanência capitalista e que acende uma dinâmica de suposta autopreservação capitalista que conduz à destruição da vida e dos seus fundamentos, dinâmica que é mais uma vez alimentada pelo vírus. Só neste contexto é que pode ser enquadrada a afirmação de Striet: „Chamar ao coronavírus um castigo de Deus é cínico“ (Striet 2020). O vírus não é um castigo de Deus, mas está relacionado com as condições criadas pelos seres humanos, condições a cuja „dominação abstracta“ eles estão sujeitos.

Em sentido análogo poder-se-ia falar de „castigo de Deus“ num contexto teológico que toma consciência do facto de que a „dominação abstracta“ das relações fetichizadas está em estrita contradição com as memórias biblicamente transmitidas de libertação da dominação e, portanto, com o discurso bíblico sobre Deus. Neste sentido – biblicamente falando – a submissão aos ídolos, ou seja, a fetichização da imanência é „castigada“. No horizonte da antropodiceia, o sujeito autónomo seria considerado „responsável“ enquanto preparador do caminho e agente das relações capitalistas, que é agora „castigado“ ficando cada vez mais privado do fundamento da sua existência nos processos de crise. Tal „castigo“ só poderia ser evitado através de uma reflexão crítica sobre o papel do sujeito e da sua liberdade no contexto da imposição das relações capitalistas e da sua crise – com o objectivo de ultrapassar tais relações. Socialmente, pelo contrário, é notório que, onde o chão desaparece debaixo dos pés do sujeito e seria preciso reflectir criticamente, este sujeito desaparece nas estruturas e sistemas do estruturalismo e da teoria dos sistemas (cf. Kurz 2004a, 169ss.) – assim, para usar uma analogia bíblica, se escondendo como Adão no jardim do paraíso, porque depois de „querer ser como os deuses“ (é assim que Gen. 3,4 seria traduzido literalmente) ele agora está „nu“ (Gen. 3,10) e tem de suportar as consequências da fetichização. Se a teodiceia não estiver ligada à antropodiceia, ou seja, à questão do papel do sujeito nas condições vigentes de uma reflexão crítica dessas condições, a „responsabilidade“ é transferida para Deus, sendo Deus assim onerado com o objectivo de exonerar o sujeito e este retirado da reflexão crítica. Isto é sempre mais fácil para as teologias orientadas para a liberdade e para o sujeito do que abordar o papel do sujeito e da sua liberdade no contexto da „dominação abstracta“.

 

  1. … e o „imperativo categórico“ real associado a esta liberdade

O presidente do Bundestag, Schäuble, deixou claro como as questões em torno do coronavírus „devem ser decididas de forma filosófica e ética“ (Striet 2020). No debate sobre o afrouxamento das medidas de precaução estatais, advertiu contra a necessidade de dar prioridade absoluta à „protecção da vida“ em detrimento de outros bens. (8) A partir do „céu de princípios“, no qual verdades supostamente válidas e intemporais são viradas para lá e para cá, também nada há a opor a isso. E assim os detentores de „verdades supratemporais“ nas suas profissões e ofícios, como os filósofos e os teólogos, apressaram-se a dar razão a Schäuble.

Mas o que é derivado como „correcto“ do „céu de princípios“ tem de ser aplicado num mundo terreno e, portanto, condicionado. Assim, em termos kantianos, é necessário um poder de julgamento que ordene e subordine o particular do mundo empírico-sensível ao geral, ou seja, às verdades gerais. É precisamente neste ponto que se torna evidente que o „céu de princípios“ não é de modo nenhum tão intemporalmente inocente como pode parecer à primeira vista. No seu âmago, o poder de julgar tem como objectivo mediar os princípios com as condições vigentes, de modo que sejam compatíveis com elas.

Sob a aparência de verdades universalmente válidas, o que representa a lei da razão universalmente vinculativa na realidade histórica aparece como altamente terreno: a lei do valor e a dissociação sexual que lhe está associada. A forma histórica de socialização da dissociação-valor está „já sempre presente“ na ponderação ética dos bens que concorrem entre si. A „protecção da vida“ é ponderada em relação à pressão para que volte a funcionar a máquina capitalista de valorização, juntamente com as actividades reprodutivas que lhe estão associadas. Isto torna-se tanto mais necessário quanto as medidas de contenção do vírus sobrecarregam ainda mais o capitalismo de crise com novos e imensos encargos de dívida, e o „sujeito autónomo“ em desintegração já não consegue suportar as restrições e pressiona pelo seu „direito“ de viver no „estado normal“ não percebido como capitalista (cf. Böttcher 2020a, cf. também também Böttcher; Wissen 2021) – e isto com todos os fardos que o seu verdadeiro estado de crise acarreta: ter de ser um „eu empresarial“, mas também com as ofertas de alívio da indústria do bem-estar e dos eventos, à altura das quais, afinal, as igrejas também querem chegar com as suas ofertas pastorais e espirituais (cf. Böttcher 2020b). É precisamente para este objectivo altamente terreno que as coisas banais e evidentes do „céu dos princípios“ devem abrir caminho. Quando se combinam com a realidade terrena da abstracção real capitalista, tornam-se o real „imperativo categórico“ para regressar o mais rapidamente possível à „normalidade“ das relações de crise, nas quais a vida, juntamente com os seus fundamentos naturais, é sacrificada de forma „normal“ ao objectivo superior da valorização do capital.

 

  1. „Ora diga lá o que pensa da religião?“ (Goethe)

Para as pessoas que reflectem sobre a sua vida em relação com Deus, coloca-se a questão de saber o que o coronavírus tem a ver com a sua fé em Deus. Magnus Striet aborda esta questão a dois níveis. Por um lado, como já referido, resiste com razão a interpretar o coronavírus como um castigo de Deus. Para ele o coronavírus pertence ao contexto dos processos „que ocorrem na evolução e não têm nada, mas mesmo nada a ver com a acção de Deus“ (Striet 2020).

A „obra de Deus“ entra novamente em jogo a outro nível, nomeadamente „quando se coloca a questão de saber como é que pode acontecer uma coisa como a que podemos observar neste momento? É aqui que se coloca o famoso problema da teodiceia“ (ibid.). Se se fala de um Deus criador, ele também não pode ser simplesmente mantido fora dos problemas associados à evolução.

A distinção entre os dois níveis, onde os processos de evolução „não têm nada, mas mesmo nada a ver com a acção de Deus“ (ibid.), mas depois a evolução tem de ser associada a um Deus criador, reflecte inconsistências no pensamento com base na teoria dos sistemas, que teólogos gostam de seguir. De acordo com a sua lógica, os contextos de vida diferenciam-se em vários sistemas autopoiéticos, ou seja, que se autoconstituem e, quando adequadamente acoplados ao ambiente, são constantemente recriados, cada um dos quais funciona de acordo com o seu próprio código, diferente em termos de pertença, e através do seu próprio meio. Por exemplo, a economia segundo o código ter/não-ter com o meio dinheiro/propriedade, a política segundo o código certo/errado com o meio direito, a ciência segundo o código verdadeiro/não verdadeiro com o meio conhecimento científico […] e também a religião com o código transcendência/imanência com o meio fé (cf. Luhmann 1985, 2008). Nesta lógica, a religião é um sistema entre sistemas, que tem de „manter-se no seu campo“ e não invadir os sistemas „seculares“.

Mas o problema é que, ao pensar nas categorias dos sistemas autopoiéticos, desaparece „qualquer conceito do todo da sociedade“ (Kurz 2004a, 174) e a questão da dominação dissolve-se nas funções do sistema. A teologia, porém, não pode pensar em Deus, se é que ele deve ser o criador e o aperfeiçoador do universo, sem o ligar ao todo. Teólogos como Striet procuram escapar a esta contradição teológica afirmando – ainda que com um ocasional encolher de ombros – pressupor o mundo tal como ele se processa evolutivamente e nos seus sistemas autopoiéticos. A teologia entra em jogo „quando se trata de interpretar o todo […]“ (Striet 2020). Isto acontece no nicho da existência privada da religião. A religião é uma das „fontes de orientação individual na vida e de lidar com a existência, certamente sob os pressupostos situacionais da lógica de liberdade do indivíduo“ (Bucher 2019, 60). Os processos históricos profanos e a sua interpretação religiosa para a vida dos indivíduos são separados entre si.

Striet usa justamente Bonhoeffer para a separação entre o profano e o religioso, quando diz citando-o „que temos de viver num mundo sem Deus – e tudo perante Deus“ (ibid.). Bonhoeffer é apropriado como um teólogo que levou a sério a secularização do mundo e se defendeu contra a sua tutela teológica. Ignora-se que Bonhoeffer, ao mesmo tempo, contradiz uma fé que se limita à ornamentação das relações privadas ou – parafraseando Luhmann – se deixa fechar na prisão de um subsistema social. Ignora-se ao mesmo tempo a dimensão sócio-crítica da teologia de Bonhoeffer (cf. Peters 1976) e a sua resistência. Com esta ignorância, o „perante Deus“ de Bonhoeffer torna-se então „exactamente o que a Chanceler também tinha em mente, deixar as coisas acontecerem com uma certa serenidade, trabalhar resolutamente para as melhorar, mas no final praticar a confiança em Deus“ (Striet 2020).

Nessa „confiança em Deus“ conjugam-se dois elementos: „levar a sério os horrores do mundo“ e o conhecimento de que „o ser humano é finito, limitado nas suas possibilidades“ (ibid.). O facto de os „horrores do mundo“ serem essencialmente determinados pelos contextos de dominação a analisar permanece fora das possibilidades cognitivas de uma teologia em que o mundo secular e a religião coexistem calma e pacificamente como domínios autónomos em sistemas diferentes. Nem mesmo „levar a sério os horrores do mundo“ pode levar a teologia a buscar conhecimentos essenciais para o seu pensamento nas proximidades de uma teoria crítica da sociedade. Ela permanece como um sapateiro conformado a não ir além da „chinela“ que o pensamento moderno atribuiu à religião: a „chinela“ do enfrentamento individual da contingência, ou seja, das contingências e limitações da vida humana. Perante o que „também faz sentido ligar-se a um poder maior, a que as pessoas chamam Deus“, sendo „este ligar-se“ por sua vez útil, porque „também chama mais uma vez a atenção para o facto de as nossas próprias possibilidades serem sempre limitadas“ (ibid.). Portanto: teólogo, atenha-se à sua tarefa de „lidar com a contingência“.

Numa tal religião, Deus situa-se nos limites onde a ciência e o progresso deixam lacunas que podem ser colmatadas com calma, mas que, em última análise, não podem ser completamente fechadas. O discurso de Bonhoeffer sobre levar a sério o mundo secular é dirigido precisamente contra as tentativas dos teólogos e teólogas de colocar Deus nos limites do conhecimento científico ou nas chamadas „questões últimas“ da existência humana. Deus seria então localizado como o chamado „suplente“ nos nichos em que o conhecimento ainda não penetrou, ou – após o seu banimento do espaço público – nos nichos da interioridade privada. „O que eu pretendo é que não se introduza Deus num último lugar clandestino, […] que se renuncie a todos os truques furtivos e não se veja na psicoterapia ou na filosofia existencial precursoras de Deus“ (Bonhoeffer 1949, 236). Neste sentido, Bonhoeffer „reconheceu o aspecto profundamente burguês da religião e chamou a atenção para o perigo que o cristianismo correria se começasse a dissolver-se nesta fase de declínio liberal da religião que o iluminismo e a burguesia tinham deixado para trás“ (Metz 2016, 66).

No confronto com o nacional-socialismo, torna-se cada vez mais claro para Bonhoeffer que a fé cristã não pode ser equiparada a uma religião e a uma cultura indiferentes às condições sociais ou que até as afirmem. Neste sentido ele quer ser „sem religião“. Não se deixa reduzir a uma fixação „religiosa“ „num poder maior a que as pessoas chamam Deus“ (Striet 2020). O „estar deste lado“ da sua fé revela-se na sua „resistência“. As reflexões de Bonhoeffer sobre a forma como os crentes podem viver „perante Deus“ num mundo „sem Deus“ não são precisamente combinadas „para deixar as coisas acontecerem com uma certa serenidade“ e „trabalhar resolutamente para as melhorar“ (Striet 2020). A sensibilidade ao que os outros têm de sofrer, especialmente os judeus, não permite uma serenidade desprendida, mas leva à crítica e à resistência.

 

  1. A teodiceia em foco: „Questionar Deus“ face ao sofrimento (Metz) – ou antes pedir conselho a Kant (Striet)?

Para muitos, perante o sofrimento dos seres humanos, especialmente perante as crueldades que os inocentes têm de suportar, a questão de Deus está encerrada. De acordo com um conhecido dito em „A Morte de Danton“ de Büchner, o sofrimento é a „rocha do ateísmo“ (Büchner 1969, 593). No caso de „Ivan Karamazov“ de Dostoiévski, Ivan não nega a existência de Deus, mas revolta-se contra ele e quer devolver o bilhete para o céu, porque mesmo uma harmonia futura não pode justificar o que ele sofreu (Dostoiévski o. J., 331). Na crise do coronavírus A Peste de Camus é referida repetidamente. O padre Paneloux, que primeiro tentou justificar a peste como um castigo de Deus, dizendo depois que ela tornava possíveis experiências de amor, é contrariado pelo médico Rieux à cabeceira de uma criança moribunda, quando este lhe diz: „Não, padre […] eu tenho uma ideia diferente do amor. E recusar-me-ei, mesmo até à morte, a amar a criação em que as crianças são martirizadas“ (Camus op. cit., 223). Mas aqueles que pensam que podem falar de Deus perante o sofrimento têm de se confrontar com a questão da teodiceia, ou seja, com a questão de saber se se pode falar de Deus perante o sofrimento, e como.

Na teologia recente, Johann Baptist Metz colocou a questão do sofrimento no centro da sua teologia sócio-crítica. Ele entende-a como „teologia depois de Auschwitz“ ou teologia „nas histórias de sofrimento e catástrofes deste tempo“ (Metz 2017, 17ss.). Em contraste com os teólogos que, tendo em conta o problema da teodiceia, falam do sofrimento de Deus para sublinhar a sua proximidade ao sofrimento das pessoas, Metz vê no discurso do sofrimento de Deus o perigo de exaltar o sofrimento das pessoas através de um sofrimento que agora também é visto em Deus. Neste caso ele vê uma tentativa de reconciliar Deus e o sofrimento apenas conceptualmente (cf. especialmente Metz, 2017a, 31ss.). As reflexões teológicas – à semelhança das tentativas teológicas de reconciliar as predicações contraditórias de Deus de amor e de omnipotência – têm de fazer de Deus o objecto das suas reflexões de tal modo que „descubram os seus segredos“, por assim dizer. Como alternativa a isto, Metz defende firmemente a teodiceia como um “ questionamento a Deus“ no horizonte de um „discurso de Deus sensível à teodiceia“ (Metz 2017a, 19-45, cf. também id. 1990, 1995). Ela resulta da sensibilidade ao sofrimento e do envolvimento crítico com as condições sociais que conduzem as pessoas a catástrofes. Teologicamente visa o fim da dominação e a salvação das vítimas e, neste contexto, „que, quando muito, o próprio Deus se ‚justifique‘ no seu dia perante esta história de sofrimento“ (Metz 1990, 105).

Striet liga agora o „questionamento escatológico de Deus“ de Metz à questão da „moralidade de Deus“, que surge da sua ligação a Kant: „Tendo em conta os duros factos do sofrimento, não terá a moralidade de Deus de ser realmente posta em dúvida?“ (Striet 1998, 52). Um Deus que não salva, embora pudesse salvar, seria um Deus imoral e não deveria ser adorado e invocado como Deus pelos seres humanos. Só quando a questão da moralidade de Deus estivesse esclarecida é que o „questionamento de Deus por Metz seria moralmente legítimo“ (ibid., 60). A questão clássica da teodiceia, que não pode ser resolvida no âmbito da razão pura e se baseia na contradição entre a omnipotência e o amor de Deus, regressa ao nível da razão prática como uma questão sobre a moralidade de Deus. Será que Deus, suspeito de imoralidade, encontra um juiz misericordioso no tribunal de Kant?

Striet está preocupado em „prosseguir a questão da teodiceia forçada por Johann Baptist Metz como um ‚questionamento a Deus‘, de tal modo que a visão de Kant sobre a incapacidade teológica da razão finita seja mantida (contra qualquer redução idealista do sofrimento ao seu conceito)“ e „ao mesmo tempo, a definição essencial ‚Deus é amor‘ (1 João 4:16) não seja suspensa […]“ (Pröpper; Striet 2009, 1397). Além disso – como Striet objecta à ênfase de Metz no carácter escatológico do „questionamento a Deus“ – a questão da teodiceia não deve ser adiada pela sua escatologização e posta de lado no presente. „Não se tornará o questionamento a Deus supérfluo se a harmonia eterna já não puder ser esperada, e isto porque já teria de ser decidido agora que essa harmonia, que não pode ser obtida sem uma justificação de Deus, não valeria o seu preço, os assassinados de Auschwitz?“ (Striet 1998, 60). Isto também poria a fé à prova, uma vez que ela teria de „se afirmar contra a sua própria consciência moral“ (ibid.).

 

8.1 Deus perante o tribunal moral de Kant

Para poder legitimar um „questionamento a Deus“, em primeiro lugar as „implicações ético-filosóficas“ (ibid.) da questão da teodiceia têm de ser debatidas e decididas no presente. Mas isso só é possível perante a instância que tudo decide, a razão autónoma de Kant como fundamento da moralidade autónoma. Isto porque „uma liberdade que tomou consciência da sua incondicionalidade já não pode admitir qualquer outra instância“ (ibid.). Esta incondicionalidade constitui a essência da liberdade. Uma liberdade incondicional é, no entanto, uma liberdade puramente formal, sem qualquer conteúdo.

Striet pensa nela como „comportamento incondicional de si próprio, abertura ilimitada de si próprio a conteúdos possíveis e decisão original de si próprio por um conteúdo“ (ibid., 67). No entanto, a incondicionalidade formal da liberdade só existe na realidade, ou seja, concretizada e vivida na prática, „se já se tiver determinado e se determinar a si própria através da afirmação real de um conteúdo“ (ibid.). Ela não encontra um conteúdo que lhe seja adequado no mundo dos objectos, mas apenas na afirmação da liberdade de outrem. A liberdade real e material que se abre à liberdade do outro, ou seja, a liberdade que se realiza em termos de conteúdo e, portanto, condicionalmente, fica necessariamente aquém da incondicionalidade formal (uma abertura de si próprio ilimitada e, portanto, incondicional à liberdade do outro). Ela falha onde as pessoas se tornam culpadas. Por isso depende da reconciliação. Só quando a reconciliação se torna concebível é que se pode demonstrar que „em termos éticos, o perdão representa a maior possibilidade de liberdade“ (ibid., 69).

Se então o „perdão da culpa representa uma implicação ética da liberdade decidida por si mesma“ (ibid.), a autonomia moral depara-se com um limite que não pode ultrapassar por si mesma. Torna-se dependente de algo que não pode realizar. „Assim entra numa antinomia que torna inevitável a ideia de Deus“ (ibid.). Perante a „lacuna“ na prática da liberdade, ou seja, perante a ameaça de fracasso devido à culpa e ao perdão inconcebível, entra em jogo a ideia de Deus e, com ela, o „questionamento a Kant“. Kant tinha recorrido à ideia de Deus como postulado da razão prática, porque sem este postulado a moralidade ficaria sem razão, porque sem esperança de recompensa, e portanto sem motivação. (9) A liberdade humana – segundo Striet – só pode atingir o seu objectivo se a reconciliação for concebível. Esta torna-se concebível e possível quando, com Deus, se postula a ideia de um ser em que a incondicionalidade formal e material coincidem, de tal modo que a reconciliação se torna possível através da ressurreição dos mortos e a liberdade humana pode ser o objectivo. Esta ficaria inacabada „enquanto uma só liberdade permanecesse não reconciliada“ (ibid., 75). Mas essa reconciliação não pode, por razões éticas, ser pensada como uma reconciliação nas costas das vítimas. Mas então „os assassinados de Auschwitz também ficaram sem reconciliação, pois não puderam perdoar aos seus assassinos“ (ibid.). Por isso, „na ideia de Deus, é preciso postular uma liberdade“ que „respeite plenamente a liberdade das vítimas e dos perpetradores e que, pela força do seu amor, dê livremente aos perpetradores o poder de pedir perdão e às vítimas o poder de conceder a reconciliação, apesar do sofrimento por que passaram“ (ibid.).

Tudo depende da possibilidade de reconciliação no contexto de uma harmonia eterna. Ela torna-se concebível com a ideia de um Deus cuja omnipotência pode ser pensada como uma „unidade de liberdade formal e materialmente incondicional“ (ibid., 74). Só sob o seu postulado se pode conjugar a incondicionalidade da obrigação moral e o seu cumprimento real condicionado, ou seja, a realização da liberdade sob as condições da contingência. Sob o postulado da omnipotência do amor reconciliador de Deus, a liberdade humana seria conduzida à sua meta, de modo que não só não se opõe à autonomia da acção moral, como a fundamenta e completa de forma reconciliadora.

A autonomia moral baseia-se numa metafísica ou ontologização da liberdade humana que se encontra sob o imperativo: A liberdade deve ser. Apesar da sua incondicionalidade formal e, portanto, sem tempo nem conteúdo, não pode, de facto, acontecer e tornar-se realidade senão como temporal e finita e, portanto, não sem objecto, ou seja, não sem conteúdo material. Porque a liberdade só pode e deve ser assim, há que pagar um preço correspondente. Por isso „será preciso perguntar se a finitude e a morte não devem ser o preço, e se não têm de ser aceites como tais para que a liberdade possa ser. O mesmo se aplicaria, então, a todo o campo da história da evolução, bem como à miséria associada a essa história, na medida em que a origem evolutiva-histórica-condicional é uma das condições factuais de possibilidade do ser humano“ (ibid., 73). Striet também sabe que „em vista da miséria opressiva“ permanecem „sem dúvida“ questões (cf. ibid., 72). No entanto, estas permanecem vagas e gerais e são abafadas à partida com „a questão da alternativa“ à liberdade. O que não pode ser nunca é o abandono da liberdade, da própria liberdade e da liberdade dos outros. Para o resto, que não é absorvido pela metafísica da liberdade, resta „o legítimo questionamento a Deus“ se ele „não poderia ter tomado outros caminhos“ (ibid., 73).

 

8.2 O formalismo cega – ‘Questionamentos’ a um pensamento em ‘formas puras’

 

8.2.1 Um conceito de Deus vazio de conteúdo

Restam não só os „questionamentos a Deus“, mas sobretudo os questionamentos a Kant e a Striet, que, com a sua graça, atribuem a Deus um lugar na razão prática como pedra angular postulada da moralidade e garante de uma liberdade que não pode falhar mesmo perante a culpa.

O Deus que aqui é necessário como postulado para colmatar as lacunas de um sistema idealista de liberdade e moralidade só pode ser um „ser superior“ indeterminado ou uma ideia de Deus na qual se pode projectar tudo o que é „sistemicamente necessário“ para a construção de um contexto de pensamento idealista fechado. Deus, que como ser supremo foi a base das provas de Deus justamente criticadas por Kant, está de volta. Apesar de não poder ser justificado pela „razão pura“, pode ser postulado de acordo com a necessidade idealista-metafísica de justificação que decorre da prática da acção moral em liberdade, e pode fazer o seu „papel“. Independentemente do curso real da história, a liberdade está assim sempre assegurada metafísica e especulativamente. As catástrofes históricas podem revelar os abismos do mal. No entanto, em última análise, deixam intocada a essência formal e incondicional da liberdade e da sua autonomia moral. Ela não pode falhar. Isto é garantido pelo Deus postulado, que no final pode endireitar a falha real da liberdade através da culpa por meio da reconciliação total, (10) de tal modo que também a liberdade dos sujeitos para se reconciliarem ainda é preservada. Sob o postulado da omnipotência do amor de Deus que tudo reconcilia, a liberdade humana seria conduzida ao seu objectivo, de tal modo que não só não se opõe à autonomia da acção moral, como a fundamenta e completa reconciliadoramente.

Embora surja um motivo bíblico com a referência a um amor de Deus que tudo reconcilia, os contornos e conteúdos associados à memória bíblica de Deus permanecem obviamente dispensáveis. Por vezes, os cenários servem para colorir o que pode e „tem de“ ser especulativamente deduzido da necessidade de justificação pela razão prática. Para a memória bíblica de Deus, porém, não é a ideia de liberdade que é constitutiva, mas a procura da libertação perante o sofrimento sob sistemas históricos de dominação e violência. Sem referência à história real e às suas catástrofes não se pode falar biblicamente nem de liberdade nem de Deus.

É por isso que a memória de Deus enraizada nas tradições bíblicas, pelo contrário, se recusa a postular a reconciliação entre vítimas e perpetradores de forma teologicamente especulativa. Mesmo em vista de um esperado fim salvífico da história, a questão da „justiça para as vítimas“ não pode ser dispensada e dissolvida na „graça barata“ (Bonhoeffer) de um amor de Deus que é suposto „elevar-se acima da realidade social, acima da dureza e impiedade da vida“ como „uma harmonia final“ (Peters 1992, 119). Sem julgamento, a salvação não pode „ser obtida“ teologicamente. O que isso implica „em última análise“ deve permanecer afastado da reflexão teológica, se esta não quiser exaltar-se e pretender devassar os segredos de Deus, a partir do alto do cavalo de uma ideia especulativa ou de um sistema idealista fechado. Tiemo Rainer Peters teve razão em dar a um ensaio „Deus perdoa tudo?“ o subtítulo: „Tentativa de evitar uma resposta“ (ibid.). A questão tem de permanecer em aberto – como se diz no final do ensaio: „Devido à imponderabilidade da acção histórica no mundo. Devido à incompreensibilidade de Deus, à inescrutabilidade da sua presença neste lado e à incalculabilidade da sua vinda no fim dos tempos“ (ibid., 125). Se se pretende falar de Deus sensatamente, respeitando a história do sofrimento humano e a incompreensibilidade do nome de Deus, que não pode ser objectivado de acordo com a proibição de imagens, só renunciando aos desejos identitários de inequivocidade e de certeza (de salvação).

O conceito vazio de conteúdo de Deus orientado para a razão prática de Kant equivale essencialmente a exaltar e justificar idealistamente a experiência moderna da liberdade e a sua abstracção da história real do capitalismo e das suas catástrofes, através de uma postulada justificação última do seu significado possível, até uma reconciliação concebível face ao fracasso no trato com a liberdade. O reconhecimento de Deus pelos sujeitos da liberdade seria moralmente justificado com a ideia de uma possível conclusão da história. Mas, acima de tudo, a história real da liberdade como história do capitalismo, que caminha sobre cadáveres e resulta na barbarização das relações humanas destruídas, encontra assim a sua legitimação de facto. A afirmação e a exaltação desta história da liberdade pelo Deus postulado, que a torna sensata através da perspectiva da reconciliação, justifica e ontologiza o particular do sofrimento através da generalização. A este respeito, a observação de Adorno de que „o mínimo rastro de sofrimento sem sentido no mundo experimentado infringe um desmentido a toda a filosofia da identidade que gostaria de desviar a consciência da experiência“ (Adorno 2003, 203 [129]) também ataca o idealismo de uma filosofia da liberdade em que o sofrimento sensorialmente vivido e historicamente mediado é esvaziado de sentido no conceito de sofrimento. De facto, a essência supostamente pura da liberdade está ligada ao que se cristalizou como liberdade e obrigação moral nas relações abstractas reais do capitalismo. Sem uma referência reflexiva a estas relações, o discurso sobre a liberdade e a moralidade torna-se uma paráfrase do que se tornou a consciência dominante da liberdade no capitalismo.

 

8.2.2 Às vezes desta maneira, às vezes daquela, … formalmente vale tudo

Também as formas vazias não podem simplesmente sair da história. Por isso têm sempre de voltar a ligar-se à materialidade histórica. O vazio de conteúdo de uma obrigação moral fundada de modo puramente formal (na incondicionalidade metafísica do dever) e o vazio de conteúdo de uma liberdade enraizada igualmente no incondicional ligam-se a diferentes constelações históricas.

 

  1. a) O homicídio como cumprimento do dever

No seu relato sobre o julgamento de Eichmann, Hannah Arendt escreveu que Eichmann tinha afirmado „com grande ênfase“ que tinha „seguido os preceitos morais de Kant durante toda a sua vida e, acima de tudo, que tinha actuado de acordo com o conceito kantiano de dever“ (Arendt 1986, 174). O extermínio dos judeus tornou-se um imperativo moral. Pode ser executado fria e rotineiramente, sem sensibilidade pelo sofrimento das vítimas; mas também pode ser exaltado outra vez pela gravidade da responsabilidade. Num discurso perante líderes nacionais e regionais em Posen, Himmler sublinhou o fardo que tinha de ser suportado com o extermínio dos judeus: „Tinha de ser tomada a difícil decisão de fazer este povo desaparecer da face da Terra“. A gravidade da decisão reside no facto de as mulheres e as crianças „terem“ de ser também exterminadas. Himmler não se considerava „no direito de exterminar os homens […] e deixar que os vingadores, na figura das crianças, crescessem para os nossos filhos e netos“. A sua preocupação era com aqueles que tinham de executar a decisão „sem que […] os nossos homens sofressem danos no espírito e na alma. Este perigo estava muito próximo. O caminho entre as duas possibilidades existentes, ou tornar-se bruto, sem coração e deixar de respeitar a vida humana, ou tornar-se brando e enlouquecer ao ponto de ter colapsos nervosos […] estava muito próximo“ (Himmler 1974, 169s.). Torna-se um „feito glorioso“ ter „perseverado através disto, e – salvo excepções de fraquezas humanas (!) – ter permanecido decente (!) […] “ (ibid., 170). A „decência“ – a conformidade com o que é moralmente „devido“ – foi preservada. O assassínio em massa é moralmente justificado e exaltado pelo peso da responsabilidade assumida pelos perpetradores no cumprimento do seu dever. Os assassinados tornaram-se vítimas de um cumprimento do dever, em que toda a sensibilidade pelas vítimas é eliminada para que os perpetradores não se tornem brutos e percam o respeito pela vida humana.

Não é por acaso que a relação com a moral de Kant também desempenha um papel importante no domínio jurídico. Tal como a ética, também o direito é por natureza puramente formal, ou seja, vazio de conteúdo, mas „pode ser preenchido com quaisquer conteúdos. Não existe nenhum critério formal que possa impedir que o racismo e o anti-semitismo consigam adquirir força de lei. Por outras palavras, até mesmo o assassínio em massa pôde desenrolar-se nos termos do direito positivo“ (Kurz 2003, 339 [228]). Robert Kurz formula isso contra a distinção feita por Ernst Fraenkel para o Estado nacional-socialista, de um „Estado-norma“ positivista de direito para um „Estado-medida“ que opera a partir da arbitrariedade subjectiva (cf. ibid., 338ss. [227ss.]). A „coisa estranha da máquina de assassínio nazi“, ele localiza-a no facto de „funcionar de modo estritamente normativo, mesmo no sentido jurídico“ (ibid., 339). Segundo Kant, „um ser racional“ pode pensar nas máximas que o guiam „como leis gerais práticas“ „apenas como princípios que, não na matéria mas apenas na forma, contêm o determinante da vontade“ (Kant 1978, 135/A 48). Mas então „nada resta de uma lei, se se separar dela toda a matéria, isto é, todo o objecto da vontade, senão a mera forma de uma legislação universal“ (ibid., 136/A 48s.). Para esta forma vazia de „vigência sem significado“ (Agamben 2002, 62), qualquer conteúdo é secundário ou indiferente. Enquanto a forma vazia de uma vontade geral legitimava a ditadura nazi como „estado de excepção“, na crise do capitalismo o „elemento ditatorial não só se confunde com o modo de proceder democrático, mas também se mistura com a anomia pós-política e pós-soberana“ (Kurz 2003, 344 [232]), pelo que a mistura de „positivismo jurídico democrático, momentos do estado de excepção e processos anómicos“ (ibid.) é expressão das relações de crise capitalista que abrem caminho a uma barbárie que já não se manifesta apenas entre os actores do Estado autoritário, mas também no contexto do asselvajamento das relações e dos sujeitos.

 

  1. b) Ou antes ‘democracia radical’ com „teologia política ’segundo‘ o pós-modernismo“?

A miséria do pensamento baseado nas formas puras da razão prática, que pode ser preenchido com qualquer conteúdo, torna-se uma virtude no pensamento teológico pós-pós-moderno. A política deve ser fundamentada numa nova ontologia política. Esta é „suportada pelo pressuposto de que todo o pensamento discursivo se vê obrigado a recorrer ao imemorial“ (van Reijen 1992/93, 110). Este imemorial é um lugar vazio que não pode ser representado, que é pressuposto para a acção política e „é ocupado repetidamente pela acção concreta, mas que também repetidamente tem de ser livremente combatido para não deixar que a acção congele na sua própria autonomia legislativa“ (ibid.). O lugar do poder é esvaziado e a autonomia é restabelecida; pois „a autonomia pressupõe, tanto teórica como praticamente, uma indeterminação como contrapolo à descrição da própria condição e do factual“ (ibid., 111). Teólogos como Ulrich Engel, que entendem a sua teologia como „teologia política ’segundo‘ o pós-modernismo“ (Engel 2016), vêem um ponto de partida positivo no lugar vazio ontologizado. Este é mediado pela proibição bíblica de imagens, que proíbe a representação de Deus numa imagem fabricada (Ex 20,4; Dt 5,6ss.). Engel vê esta proibição de imagens „numa relação tensa com o entendimento no Novo Testamento de Cristo como a „imagem do Deus invisível“ (Cl 1,15), bem como com a visão teológica da criação em que o ser humano é feito à imagem de Deus (Gn 1,27)“ (Engel 2016, 40s.). Esta tensão torna-se fecunda para a legitimação da democracia e das diferenças que lhe estão associadas. Nos seus „marcadores de diferença privado/público, presente/ausente, invisível/visível, a imagem, que está ela própria novamente sob a proibição de imagens, funciona como um catalisador do político, que como dispositivo simbólico, por sua vez, dá forma e com ela significado à sociedade, encenando-a para si mesma“ (ibid., 46). Assim a política precisa da religião de uma maneira nova, pós-moderna, não como exaltação das autoridades políticas através das ideias de representação de um divino, de um poder superior, de uma ideia ou algo do género, mas como governadora de um lugar vazio. Simboliza uma abertura que dá sentido à sociedade e que deve conduzir para além da sua pura imanência. Isto corresponde a uma „democracia radical“ como „uma sociedade autónoma“ (ibid., 44 ss.). O poder que nela se exerce não pertence a ninguém. E ninguém o pode encarnar. A sua autonomia está assegurada numa indeterminação vazia que se encontra à sua frente. Neste lugar vazio do poder vê Manemann ancorada a „permanência do político-teológico na democracia moderna“ (Manemann 2004, 184).

Mesmo em tempos pós-modernos tornados mais politeístas, Deus teria encontrado um lugar no lugar vazio do poder. É utilizado como „postulado“ de um vazio no qual as democracias pós-modernas são ontologicamente fundadas. Ao mesmo tempo o próprio conceito de Deus deve permanecer vazio em termos de conteúdo. Deus também não deve ser explicitamente nomeado e deve permanecer anónimo. Caso contrário corre-se o risco de o associar a um conteúdo. Mas então seria inadequado como postulado vazio de uma democracia vazia, que na crise, perante o „vazio de conteúdo do valor, do dinheiro e do Estado“ (Kurz 2003, 69), corre para o vazio e aí abre caminho para o „potencial de aniquilação“ (ibid., 70) inerente à socialização capitalista. Isto, por sua vez, só é reconhecível se a democracia não for assegurada nem através da ideia de representação nem através da ideia de vazio, mas for entendida no seu carácter político-económico como uma forma política altamente imanente da socialização da dissociação-valor. Então poderia também tornar-se visível que o seu verdadeiro vazio está relacionado com o facto de o processo de valorização e, com ele, os sujeitos estarem a ficar sem trabalho, que é a substância do processo de valorização capitalista. Isto também faz que a democracia caia no vazio da barbarização, no qual devora os seus filhos (cf. Scholz 2019) e que o vazio do processo de valorização vá dar à destruição da vida e dos seus fundamentos. Nenhum recurso ao ontologicamente imemorial pode proteger contra isso – nem o recurso à imemorabilidade esquecida do ser como mito primordial, nem um vazio ontologizado com um Deus que permanece anónimo como postulado oculto e a ser ocultado.

Tal „Deus“ não precisa de uma teodiceia teológica como justificação. Ele encontrou a sua justificação na democracia, que ele por sua vez justifica em círculo. Os filhos da democracia por ela devorados permanecem invisíveis. O sofrimento das vítimas é associado às injustiças económicas, mas não à democracia. Pelo contrário, esta está ao seu lado como uma promessa por cumprir. Deve ser desenvolvida para proteger as vítimas das injustiças económicas através do alargamento das regulamentações, até que finalmente encontre a sua conclusão como „democracia radical“ (Engel 2016, 44s.) numa economia democratizada sem vítimas de violência económica. Não se torna cada vez mais voraz por rodar em falso com a diminuição da valorização do trabalho. Pelo contrário, ela salva e completa – precisamente porque está ligada a „lugares vazios não representáveis na estrutura do poder“ (ibid., 41), a imagens sem imagem que como „sacralizações mudas estruturam subterraneamente a sociedade“ (ibid., 46). Já nem sequer é um „ser superior“ que salva aqui, mas um postulado democrático anónimo e auraticamente carregado, que se efectiva em „marcadores sacrais criptogâmicos da diferença“ (ibid., 45) em pares de opostos como privado e político, invisível e visível.

Por mais vazio que o pensamento formal possa parecer, ele tem de fazer ligações com a história. Esta torna-se material indiferente ao conteúdo para o exercício da liberdade do sujeito autónomo, que, apesar de todos os altos voos da liberdade metafísica, não pode desligar-se completamente do material de uma história altamente terrena, mas tem de se „preencher“ com ele. A liberdade exaltada com o vazio metafísico é uma liberdade que tem de se realizar no material e sob as condições das relações capitalistas reais. O sujeito autónomo da moralidade e/ou da acção política é um agente de acções que se situam no contexto da „coerência cega do sistema“ (Kurz 2005, 210) da socialização da dissociação-valor, que só pode funcionar mediada pelas acções dos sujeitos. Estes são „livres“ no quadro que estas relações estabelecem. Neles se expressa a dominação abstracta das relações, que Marx descreveu com o conceito paradoxal de „sujeito automático“ (Marx 1984, 169) tendo em vista o processo de valorização do capital. A „luz do iluminismo“ (cf. Kurz 2004b) cega e torna cega esta ligação, que transforma os sujeitos em apêndices do processo capitalista de valorização e, na sua crise, faz desaparecer cada vez mais as suas „liberdades“ sistémicas. O caminho para lá chegar é a submissão „autónoma“, a tarefa a ser executada „sob a sua própria responsabilidade“, para permanecer capaz de agir na crise como um „eu empresarial“ (cf. Bröckling 2013) sob as condições de intensificação da concorrência – até que esta liberdade também atinja a última „determinação“ e o cumprimento da sua liberdade num eu tornado „exausto“ (cf. Ehrenberg 2008) ou „supérfluo“.

O sujeito autónomo capaz de acção ética e política „tal como a sua ‚liberdade‘ não é deste mundo, encontrando-se pela sua própria essência separado de toda a sensibilidade, objectualidade prática e necessidade social; é um mero fantasma da vazia forma fetichista do valor“ (Kurz 2004a, 27). A sua liberdade permanece incondicional e formal, mas assim „vazia e do outro mundo, ao passo que a vida real se desenrola segundo a batuta da impiedosa ‘lei natural’ do capital e do seu infindável processo de valorização“ (ibid., 28). O postulado abstracto real da sua liberdade vazia não é Deus, mas o fetiche do capital e a relação de dissociação que o acompanha (sobre isto, cf. especialmente Scholz 2011). Mantém a forma capitalista da sociedade „unida no seu íntimo“ ou deixa-a quebrar-se na crise e cair no nada. Não há mais nada para „completar“. O „Deus“ ou ídolo idealista e transcendentalmente postulado e fundido com as condições cai com as condições. Expresso em linguagem bíblica: Deus tornou-se um ídolo, um fetiche, a ideia de Deus foi privada da sua transcendência e das conexas possibilidades de transcender, ou seja, do pensamento e da acção transcendendo os limites da imanência fechada.

 

  1. A teodiceia na teologia sócio-crítica como „questão da salvação dos que sofrem injustamente“

Para Metz esta configuração da questão da teodiceia situa-se no contexto de uma ruptura categorial no pensamento filosófico e teológico. Ele rompe tanto com o pensamento ontológico grego sobre o ser, (11) como com as orientações idealistas transcendentais que moldam a teologia dominante. Não se refugia em certezas ontológicas e idealistas. Os consolos e apaziguamentos que as acompanham procuram, em última análise, escapar às contradições do sofrimento acumulado na história e „superá-lo“ identitariamente numa ideia abrangente ou num sentido imperecível. Através da categoria da memória, Metz liga-se ao pensamento crítico orientado para a história das tradições bíblicas e às experiências de sofrimento e opressão nelas recordadas. A memória é essencialmente „memoria passionis“. Impede que o pensamento teológico se baseie em categorias do pensamento helenístico sobre o ser e as ideias, bem como nas diferentes variantes do pensamento idealista transcendental moderno – seja nas pegadas de Kant ou de Hegel. Constitutiva da „memoria passionis“ é a „rememoração“ (Walter Benjamin) de experiências e constelações de sofrimento da história.

A questão da teodiceia é então colocada „não numa versão existencialista, mas numa versão política“ (12) numa questão a Deus que toma forma no „grito de salvação do outro, dos que sofrem injustamente, das vítimas e dos vencidos da história“ (Metz 1990, 104). A categoria da memória tem em conta não só o presente, mas também os sofrimentos e horrores passados da história. Ao mesmo tempo, vincula a teologia a conteúdos que são transmitidos na tradição judaico-cristã como feridas ainda abertas e promessas ainda não cumpridas. Estes conteúdos não pertencem à pré-história de uma fé que, entretanto, já foi perpassada por uma teologia esclarecida, mas sim à constituição do seu pensamento e ao conteúdo da sua memória. As categorias da „teologia política“ não permanecem formais, mas são inseparáveis dos conteúdos recordados e vindos à tona na „memoria passionis“. As feridas da história de sofrimento da humanidade ainda abertas na memória e as promessas e esperanças de libertação e salvação nela transmitidas biblicamente aguçam a questão de Deus perante o sofrimento como uma questão escatológica, fazem dela um „questionamento a Deus“ (ibid.), exortando-o a revelar-se como libertador e salvador.

A importância central da categoria do sofrimento liga a teologia metziana ao pensamento de Adorno, como é especialmente evidente na „Dialéctica Negativa“. Ela contrasta com „a lei formal do pensamento“ (Adorno 2003, 66 [39]), na qual o mítico se diluiu como „o sempre igual“ (ibid.). A isto contrapõe-se uma „cognição que quer o conteúdo“ (ibid.). Visa a „utopia“, a „consciência da possibilidade“ (ibid.). Esta, no entanto, não se alimenta de devaneios idealistas, mas vai buscar a sua cor ao „inexistente. É servida pelo pensamento, um pedaço de existência que, ainda que negativamente, se aproxima do inexistente“ (ibid.). É aqui que o pensamento ganha o seu poder crítico contra a positividade das relações. Dirige-se „àquilo que no objecto […] foi perdido pela sua preparação para objecto“ (ibid., 31). No sofrimento torna-se reconhecível a „preparação para objecto“. „Pois o sofrimento é a objectividade que pesa sobre o sujeito; aquilo que ele experimenta como seu mais subjectivo, a sua expressão, é objectivamente mediado“ (ibid., 29 [16]). A este respeito, Adorno pode dizer: „A necessidade de dar voz ao sofrimento é a condição de toda a verdade“ (ibid.). A liberdade não está assegurada em postulados que pairam em formas puras acima das relações, ao mesmo tempo que afirmam as relações. A liberdade ganha forma na crítica e na negação das relações que fazem sofrer. Formulado epistemologicamente: A verdade do pensamento não é assegurada ontologicamente e/ou através do idealismo histórico – mesmo que seja „apenas“ através de postulados – mas está ligada às relações que fazem sofrer, e só na sua negação se eleva acima delas.

Isto também se aplica à verdade teológica. A „memoria passionis“ refere-se à história do sofrimento humano. O nome de Deus – tal como é transmitido pela Bíblia – rompe transcendentemente com esta história de sofrimento ao negar a dominação. Esta transcendência não pode ser pensada sem referência ao sofrimento e ao tempo. Por isso a pretensão de verdade que lhe está associada não pode ser „assegurada“ em sistemas de pensamento idealistas ontológicos e transcendentais intemporais, mas articula-se como „questionamento a Deus“, perguntando quando as promessas de libertação associadas ao nome de Deus se tornarão realidade. Ao ter em conta a „crítica da razão pura“, o pensamento teológico está privado do acesso a uma transcendência para além da história. Relacionado ao tempo e à história, permanece metafisicamente inseguro. A promessa de uma libertação que inclui também as vítimas da história, ou seja, os mortos, só é concebível em ligação com a ideia de um fim dos tempos. Só quando Deus se revela o „Senhor“ do tempo, o limita e lhe põe fim, é que as promessas se tornam realidade. A pretensão de verdade por detrás do nome de Deus, que inclui também os que sofreram no passado, teria de ser redimida pelo próprio Deus, tornando-a realidade. Neste sentido, „a questão da salvação dos que sofrem injustamente“ (Metz 1995, 104) situa-se num horizonte escatológico que implica o fim dos tempos.

A temporalização do pensamento opõe-se à suposta intemporalidade da metafísica, bem como às ideias de uma história evolutiva ou dialecticamente sempre em progresso. Ambas implicam uma perpetuação do tempo, que pode ser associada à ideia do „eterno retorno do mesmo“, como em Nietzsche. Em contraste, a ideia judaico-cristã de Deus implica um início e um fim do tempo. Deste modo quebra o feitiço da eternidade do tempo e orienta o olhar para a história, para o que acontece no tempo. Em termos teológicos, a intemporalidade „sobrenatural / do além“ da salvação como redenção e a não-salvação „natural-terrena“ do tempo já não podem ser colocadas lado a lado ou uma por cima da outra num dualismo gnóstico. (13)

A história também não pode ser reduzida à historicidade como existencial, mas tem de ser categorialmente incluída no „logos“, ou seja, no pensamento da teologia como história que se desenvolve realmente em termos de conteúdo, cheia de sofrimento e catástrofes. Mas então não existe „uma história do mundo ’natural‘ e, adicionalmente, uma história da salvação“ ’sobrenatural‘, mas sim „uma história, e a história da salvação é aquela história mundial na qual passados inacabados e uma esperança de fim dos tempos são proclamados para todos“ (Metz 2017b, 72) – uma esperança que está „por um fio“ na salvação das vítimas.

A ideia judaico-cristã de Deus, com a sua visão do curso concreto da história como uma história de sofrimento e catástrofes, implica uma reflexão sobre o „todo“ da história. Com a „memoria passionis“ que lhe é inerente, transcende, no sentido de uma dupla transcendência (cf. Böttcher 2013, 151ss., cf. id. 2018, 281ss.), as fronteiras das relações de dominação na história, mas também a história como um todo e, portanto, a dominação do tempo. (14) Nestes contextos, não pode haver uma resposta teológica definitiva à questão da teodiceia. Por um lado, ela pressuporia ter de ver a história conceptualmente, ou seja, em termos de lógica da identidade, e submeter o sofrimento real a um conceito de sofrimento. Por outro lado, teria de fazer de Deus o objecto identificável e transparente do seu pensamento. A teologia não pode justificar Deus. Mas deve perguntar-se como se pode falar dele perante os abismos da história de catástrofes. Segundo Metz, ela pode fazê-lo adequadamente se permitir a não-identidade do sofrimento na memória do sofrimento, se se articular como uma crítica das relações sociais de violência e como um questionamento escatológico a Deus, como uma pergunta sobre a salvação dos que sofrem. „Onde a teologia quisesse deixar para trás esta não-identidade imposta na rememoração histórica, que faz do seu discurso de Deus um discurso constitucionalmente não ameaçado, ela acabaria por se colocar no lugar do próprio Deus e assim o esqueceria da forma mais obstinada“ (Metz 2017b, 105).

 

  1. Pathos afirmativo da liberdade versus negação sócio-crítica

A autonomia moral está associada a um pathos de liberdade que anda de mãos dadas com a afirmação tácita das condições vigentes. Converge com o „pathos para as ciências“ de Striet (2020) e com a sua confiança inabalável no progresso científico e técnico. O que acontece objectivamente às pessoas, cujo condicionamento social objectivo as torna pobres e doentes, não tem lugar neste pensamento. O sofrimento não é pensado como „objectividade“ que pesa sobre as pessoas – isto é, na sua mediação com as condições que provocam o sofrimento – mas é atribuído à contingência humana. Cujas eventualidades podem ser cada vez mais reduzidas com o progresso da ciência. O Deus postulado é responsável pelo resto que ainda tem de ser reconciliado e que não está incluído nisto. Reconciliando tudo, ele endireita o restante. Ao fazê-lo justifica a liberdade, encontrou nela a sua própria justificação e provou a sua idoneidade moral.

Como teólogo Striet move-se „ao nível“ de um apologista profano do progresso, como o filósofo Odo Marquardt. Para ele a questão da teodiceia mantém-se, devido à „penetração dos vestígios“ de males que não desaparecem completamente, mesmo com o progresso. Isso leva à „síndrome de A Princesa e a Ervilha“. Segundo a qual „o homem moderno […] é aquele que consegue sofrer cada vez mais com cada vez menos: é esse, afinal, o objectivo do conto de fadas A Princesa e a Ervilha. O negativo torna-se um problema tanto maior quanto mais é eliminado; pois quanto melhor se está, pior se acha aquilo que torna a situação melhor. Então aplica-se o seguinte: o alívio do negativo, precisamente ele, predispõe para a negação daquilo que alivia“ (Marquardt 1990, 91).

Em vez de se estar grato pelas bênçãos do progresso, a ervilha torna-se um problema e é virada contra a instância à qual se devem as bênçãos de uma vida livre de sofrimento com excepção da ervilha. Esta ignorante negação da gratidão pode levar a coisas ainda piores: à „obsessão da negação“ (ibid., 101). Que ameaça surgir quando, no contexto da filosofia da autonomia, Deus desaparece por completo, por exemplo quando a inexistência de Deus é inferida da incompatibilidade entre a bondade e a omnipotência divinas, e já nem sequer lhe é concedido „asilo“ como postulado da razão prática sem conteúdo. Agora a sociedade é responsável pelos males e o ser humano pela sua eliminação. Nasce assim a „teodiceia do melhoramento do mundo“. Para ela, „a mera melhoria do mundo não é suficiente: para a teodiceia, o mundo tem de ser sempre melhor do que apenas melhor, nomeadamente, um bem sem mal, até ao céu na Terra, que já não é Terra na Terra“ (ibid., 99). É por isso que o Deus inexistente, declarado morto, continua a ser usado – como cifra para a consciência da contingência e da sua compensação ao mesmo tempo. „Iluminismo mais consciência compensatória da finitude“ (ibid., 101) é a fórmula mágica com a qual „as dificuldades de dizer sim“ (ibid.) podem ser reduzidas. Com esta fórmula esclarecida, o demónio da „obsessão da negação“ pode ser exorcizado e a „disponibilidade para concordar com o mundo real moderno“ (ibid., 100s.) pode ser reforçada.

Se não for possível transformar a „obsessão da negação“ numa vontade de consentimento, à maneira suave de um exorcismo dos demónios, tem de se recorrer à violência, se necessário. A agressão tem como alvo aqueles que são vistos como „supérfluos“ num mundo cada vez melhor e mais livre, e que têm o potencial de reforçar a disponibilidade para a negação. Neste contexto – na formulação de Robert Kurz a propósito de Marquardt – „os controleiros democráticos exigem, com sanha inquisitória, uma profissão de fé generalizada no estado ‘são’ do mundo e na propaganda iluminista de que tudo está a correr cada vez melhor“ (Kurz 2003, 359 [241s.]). Quem, com a sua resmunguice negativista, faz com que as conquistas da liberdade apareçam como algo ruim num processo de progresso, torna-se ele próprio o inimigo da liberdade, contra cuja ameaça uma sociedade livre tem de se proteger. Esta disposição – „se necessário também como disposição interior para a guerra civil“ (ibid.) – legitima e alimenta as tendências autoritárias que estão ligadas ao avanço da crise do capitalismo para uma catástrofe global.

 

Para o pensamento sócio-crítico, pelo contrário, é essencial insistir na negatividade do pensamento despertado pelo sofrimento. Uma vez que o sofrimento físico e psicológico das pessoas na sua existência somática é objectivamente mediado pelas relações sociais, esta verdade só pode tornar-se „eloquente“ (Adorno 2003, 29) quando a questão do sofrimento das pessoas é ligada à questão do conjunto das relações sociais e, portanto, da forma social, sendo colocada como uma questão de „totalidade concreta“. Como Roswitha Scholz deixou claro, trata-se de pensar em conjunto categorias „gerais e abstractas“ como determinação da forma social e manifestações „empíricas concretas“ das relações sociais (cf. Scholz 2009).

Embora a questão da forma das relações capitalistas seja constitutiva para Adorno, na sua determinação ele redu-la às relações de troca, sem incluir a sua forma de produção nem a forma jurídica e, acima de tudo, sem reflectir sobre a dissociação nem avançar para o entendimento da forma de uma socialização da dissociação-valor (Kurz 2004a, 19). Se a forma de produção da mercadoria e a determinação do seu valor através do dispêndio de trabalho humano, bem como a dissociação da reprodução não forem consideradas, a crise do capitalismo, que se tem vindo a manifestar como crise final desde a revolução microelectrónica, não pode ser entendida. A crise do trabalho é tão inseparável da crise do capitalismo como a crise da reprodução. O trabalho e a família estão a desmoronar-se, e são maioritariamente as mulheres que carregam o fardo da luta pela sobrevivência em condições de decadência e barbarização. ‘Pelo menos’ a crise do coronavírus tornou visíveis as mulheres que estavam à mercê da crise dos cuidados mal pagos nos perigosos focos da crise. Foram aplaudidas, mas objectivamente deixadas no seu estatuto inferior. Uma vez que as mulheres trabalham com particular frequência no sector da hotelaria e da restauração, muitas perdem os empregos no vai e vem entre a abertura e o confinamento. Além disso a actividade de cuidados das mulheres aumentou mais ou menos de seis para oito horas por dia. Ao mesmo tempo isto significa que as mulheres são particularmente afectadas pelo encerramento de creches e escolas (cf. Kölner Stadt-Anzeiger de 8.3.2021).

Na escalada da crise do capitalismo, mais uma vez alimentada pelo coronavírus, a irracionalidade da confiança no progresso transforma-se em confiança na continuação de uma catástrofe em que, ao mesmo tempo, as liberdades reduzidas à socialização capitalista se tornam cada vez mais obsoletas – apesar de parecerem estar asseguradas formalmente e em termos de idealismo transcendental. Entender a história como história de decadência sem uma perspectiva emancipatória, assim ontologizando a decadência, seria o reverso da confiança no progresso. Em contraste, a crítica da dissociação-valor pode retomar a insistência epistemológica de Adorno na negatividade do sofrimento, mas, ao mesmo tempo, tornar claro que, embora não haja perspectivas emancipatórias para a acção na sociedade da dissociação-valor, pode haver – e tem de haver – uma ruptura com as suas categorias reais, se se quiser ultrapassar o „patriarcado produtor de mercadorias“ (Roswitha Scholz).

 

No que diz respeito à concepção das relações sociais como „totalidade concreta“ da sociedade da dissociação-valor e da sua crise, o pensamento de Metz também permanece redutor. Apesar de observações mais associativas sobre a sociedade da troca, a questão da constituição das relações capitalistas e do seu contexto de crise continua a ser omitida. É precisamente disso que Metz abstrai quando fala do sofrimento e da história da catástrofes, da „teologia depois de Auschwitz“, sem relacionar este sofrimento com a história de sofrimento e de catástrofes do capitalismo e das suas formas sociais. Sem essa contextualização, mesmo na análise do sofrimento social não se poderá escapar ao perigo de „degradar o sofrimento ao seu conceito“ (Metz 1990, 117). Se se quiser formular e afirmar a pretensão de verdade que está ligada à memória a ser transmitida, isso continua a depender da mediação com a teoria social crítica. A sua pretensão de verdade depende desta mediação (cf. Böttcher 2013 e 2018). Tomás de Aquino, no âmbito do seu pensamento cosmocêntrico e incipientemente antropocêntrico, tinha criticado „a opinião de certas pessoas“ que „dizem que não importa para a verdade da fé o que se pensa sobre as criaturas se se tem a opinião correcta apenas em relação a Deus […] Pois o erro sobre as criaturas passa para uma falsa opinião sobre Deus e afasta o espírito do ser humano de Deus […] “ (Tomás de Aquino 2009, 10s.). Tomás afasta-se assim da ideia de uma „dupla verdade“ e da conexa separação do conhecimento das ciências naturais e da filosofia, por um lado, e do conhecimento teológico, por outro, tal como defendido pelo averroísmo (15) no final da Idade Média. Segundo Tomás, não pode haver conhecimento teológico „puro“ que não seja mediado pelo mundo criado. Esta visão, que Tomás tinha relacionado com a ligação entre o conhecimento de Deus e o conhecimento da criação e da criatura, importa hoje ser mais pensada em termos da ligação necessária entre o conhecimento da crítica social e o conhecimento teológico.

Em ligação com a teoria social crítica, a questão da justificação de Deus face ao sofrimento não pode ser abordada independentemente da crítica das condições que causam o sofrimento, ou seja, a questão da „justificação“ dessas condições. A questão da transcendência de Deus face ao sofrimento implica a „oposição decidida a qualquer forma de injustiça que cause sofrimento“ (Metz 1990, 104). Mas mesmo esta oposição permanece abstracta se deixar de fora a questão de transcender as condições que fazem sofrer as pessoas – na situação actual, a questão de ultrapassar a dominação do capitalismo como uma imanência fechada de condições fetichizadas, com cuja crise o sofrimento das pessoas se intensifica ao ponto de destruir a vida humana e os seus fundamentos naturais. Uma vez que a memória de Deus não está ligada apenas às respectivas condições, mas também a toda a história, o sofrimento do passado também se torna visível com ela. Com ela levanta-se também a questão das vítimas passadas da dominação e da possibilidade da sua salvação. Assim não é por acaso que a ideia de ressuscitar os mortos se cristalizou neste horizonte. Na tradição judaica, ela surgiu tendo em vista os sacrifícios das lutas pela libertação de Israel da dominação grega (isto é, da dominação dos Selêucidas no século II a. C.) no quadro de tradições apocalípticas críticas da dominação, como o Livro de Daniel. Dois aspectos são importantes aqui. Em primeiro lugar, era inconcebível para os apocalípticos que o Deus de Israel recusasse fidelidade àqueles que arriscaram a vida pela memória da libertação de Israel. Em segundo lugar: Ligada à ideia de ressurreição estava a ideia de julgamento. Este facto fez sobressair o aspecto crítico da dominação, ou seja, o facto de a ideia de atravessar a fronteira da morte não poder ignorar a ligação com as condições da morte e, portanto, com as condições das vítimas e dos „perpetradores“. É precisamente isso que se exprime no pensamento apocalíptico do julgamento e na esperança de outras condições, biblicamente de um „novo Céu e uma nova Terra“ (Ap 21).

 

As posições ateístas que remetem para o iluminismo apontam de maneira quase clássica para a sua função de incutir esperanças no Além com ideias de ultrapassagem dos limites da morte e, portanto, do tempo e da história. Nos tempos em que a ideia apocalíptica de ressuscitar os mortos teve o seu início, forças como os „sumos sacerdotes“ e parte dos escribas, que queriam manter as condições de governo em conjunto com o helenismo e, mais tarde, com Roma, eram cépticas em relação a ela, porque sabiam que a ideia de ressuscitar os mortos estava ligada às tradições apocalípticas críticas da dominação. Os iluministas – ateus ou „crentes“ – já se inquietam ou reagem com uma resistência agressiva quando se deparam com uma crítica da sociedade que não considera „este lado“ das relações capitalistas, incluindo a democracia, como o „melhor dos mundos“, pelo menos em princípio, e quer chegar a relações históricas „para além“ da socialização da dissociação-valor. A oferta religiosa dos iluministas chama-se lidar com a contingência. É a variante iluminista da promessa vã.

Partes relevantes da teologia também curvam humildemente a cabeça perante o iluminismo e afirmam as relações capitalistas que lhe estão associadas. Este é o preço a pagar por querer estar „à altura dos tempos“ com Kant. São orientadas para a „teoria da liberdade“. Trata-se da incondicionalidade da liberdade e da pretensão do dever a ela ligada na auto-realização da liberdade humana, que experimenta uma resposta confirmadora no encontro com a liberdade do outro.

Perante a morte, „a afirmação incondicional de uma outra liberdade ameaça, afinal, ser retirada. E isto aplica-se ainda mais às relações de liberdade marcadas pela culpa“ (Striet 1998, 70). Para que o perdão da culpa possa levar à reconciliação entre vítimas e perpetradores e a um mundo harmonioso, Deus deve ser postulado e pensado como „um ser […] que, por ser a unidade da liberdade formal e materialmente incondicional, ressuscita os mortos e medeia a reconciliação entre os seres humanos para que a liberdade humana atinja o seu objectivo“ (ibid.). Um tal Deus encontrou „graça“ perante os teóricos da liberdade, na senda de Kant. Porque ele justifica a liberdade do sujeito no tempo e para além do tempo, é eticamente justificado acreditar nele e esperar dele. A teodiceia de Metz, enquanto questionamento escatológico a Deus perante a história do sofrimento, tornou-se a justificação ética da fé num Deus que conduz a liberdade humana à perfeição, apesar dos seus envolvimentos culposos. As condições sociais que estão na base desta liberdade e as catástrofes que lhe estão associadas são ocultadas e assim afirmadas. São ultrapassadas „as dificuldades de dizer sim“ (Marquard 1990, 87ss.).

O pensamento apocalíptico e as esperanças apocalípticas, que se expressam perante as condições reais de não-liberdade e, ao mesmo tempo, pensam também na ruptura com essas condições, permanecem estranhos a esses teóricos teológicos da liberdade. Eles querem transcender a imanência da história sem tocar na imanência das relações históricas de dominação. Teologicamente, porém, só se pode falar de ressurreição em ligação com a crítica das relações de dominação. É precisamente isso que sublinha o discurso sobre a ressurreição do Messias crucificado por Roma. Quando se diz dele que Deus o ressuscitou dos mortos, isso implica a crítica das condições que levaram à sua execução.

Assim o conteúdo de verdade do discurso da ressurreição não é de modo nenhum „provado“ ou afirmado como certo. A teologia excede-se a si própria se pensar que dispõe de certezas. Isso pressuporia fazer de Deus ou da transcendência o objecto definível do seu conhecimento, para dispor dele, por assim dizer. Também permanece remetida para a reflexão de um limite: para a reflexão de experiências que simultaneamente empurram para lá de um limite. O que é premente e opressivo ao mesmo tempo é o sofrimento das vítimas, sobre o qual não pode haver descanso. Esta inquietação conduz a reflexão teológica para perto da dialéctica negativa de Adorno, em direcção à „experiência de que o pensamento que não corta a sua cabeça desemboca na transcendência, indo até à ideia de uma constituição do mundo na qual seria não apenas abolido o sofrimento existente, mas revogado mesmo o sofrimento irrevogavelmente passado“ (Adorno 2003, 395 [257]). Não se trata – como Adorno sublinha – de um argumento com o qual se possa provar algo. A sua observação é feita no contexto da questão de saber „se a metafísica não sobrevive senão no mais ínfimo e mais lamentável, e se, nesse estado de completa inaparência, ela conduz à razão uma razão autoritária que cuida de seus negócios de maneira irrefletida e sem resistências“ (ibid., 394s. [256s.]). Para além do facto de que mesmo a formulação de Adorno „conduzir à razão“ não avança para lá do iluminismo para uma reflexão que rompe com a razão esclarecida como legitimação das relações capitalistas, uma coisa se torna clara: a dialéctica negativa, como crítica do pensamento na lógica da identidade, não pode deixar os sofrimentos do passado como estão e aceitar o seu carácter definitivo, um pouco envergonhada mas tranquilamente. Aqui ela não pode afirmar argumentativamente a revogação do passado irrevogável. Ao mesmo tempo, porém, „contradiz a tentativa de uma consciência desesperada de erigir o desespero como algo absoluto. O curso do mundo não é absolutamente fechado, tampouco o desespero absoluto; é muito mais esse desespero que constitui o seu carácter fechado“ (ibid., 365s. [257]).

A teologia deveria reconhecer que o salto para as certezas identitárias continua bloqueado. Isto aplica-se também à teologia afirmativa da liberdade. Esta transfere da metafísica para a razão prática a certeza que já não pode ser alcançada através da prova ontológica de Deus. Não ascende a uma nova certeza de Deus. Deus tem de se contentar com o papel de um postulado. O que é metafisicamente certo, no entanto, é a incondicionalidade da liberdade em conexão com a reivindicação moralmente obrigatória do dever como forma vazia. Uma forma vazia „em si“, porém, não pode existir na realidade, mas tem de estar ligada a um conteúdo material. Por detrás da forma vazia da liberdade, como conteúdo material invisível, está a sociedade capitalista e, com ela, os sujeitos, cuja real realização da liberdade é banida materialmente e, portanto, em termos de conteúdo, para a forma de socialização da dissociação-valor. Esta liberdade é supostamente certa e Deus como postulado é pressuposto ou „anexado“ a ela, dependendo do gosto de cada um.

Adorno faz uma observação sobre a prova ontológica de Deus: o seu conceito „não é real como queria a prova ontológica, mas ele não poderia ser pensado se algo na coisa não impelisse para ele“ (ibid., 396 [257]). O que empurra para Deus na teologia actual é aquilo que não está nem no conceito nem na realidade positivamente concebida: a experiência do sofrimento numa catástrofe crescente. Neste horizonte, ela não teria uma prova, mas uma linguagem para a memória não correspondida de Deus e a conexa „promessa de uma grande justiça, que também toca nos sofrimentos passados“ (Metz 1990, 104). Articula-se negativamente a partir da experiência da sua falta e, portanto, como „uma justiça ausente e a ser reclamada“ (Zamora 2018, 211). A ideia bíblica de justiça aqui conotada deve ser distinguida das exigências éticas de justiça no âmbito das relações de dominação pressupostas. Se isto se baseia no desejo ou na verdade que é reivindicada com a memória de Deus, só seria decidido se, com o fim dos tempos, as promessas associadas ao nome de Deus se tornassem escatológicas, isto é, para a história como um todo, e finalmente uma realidade. Mas mesmo então subsistiriam questões essenciais. Mesmo que as vítimas da opressão e da violência fossem salvas, „a história terrível“ não seria apagada, não seriam justificadas „as coisas terríveis que aconteceram antes“ (Rahner 1980, 462).

 

  1. Considerações finais: O apelo à liberdade na crise do coronavírus

Durante a redacção deste texto já se extinguiu o interesse pela questão da teodiceia, despertado na Alemanha entre os teólogos e os media no início da crise do coronavírus. Mas quanto mais a crise se prolongava, mais o apelo à liberdade se tornava evidente. Analogamente à incondicionalidade de uma liberdade formal, articulou-se como exigência imediata de liberdade „em si“. Em termos materiais, de conteúdo, tratava-se sempre do regresso à liberdade dentro do quadro estabelecido pela normalidade da crise capitalista (cf. Böttcher; Wissen 2021). A liberdade de viajar chegou a assumir o estatuto da liberdade de consumo de bananas na RDA a chegar ao fim. Não por acaso se articulou como um apelo à democracia, ao qual poderiam juntar-se pessoas de diferentes cores, desde a AfD e pensadores transversais até ao FDP e activistas e teóricos de esquerda como Alex Demirović.

Aqueles que tinham de ser tratados no sofrimento e na morte em unidades de cuidados intensivos foram esquecidos. O que mais se discutiu foi a quantificação do sofrimento, sob a forma da questão de saber quanta poderia ser a carga sobre as unidades de cuidados intensivos para que o „sistema“ não ameaçasse entrar em colapso. Os vários sectores – dos cabeleireiros aos prestadores de serviços culturais – exigiram a sua liberdade de produção, oferta e venda. Sob a pressão do regresso à normalidade capitalista e à sua „ordem básica liberal-democrática“ e respectiva legitimação, já não se tratava do coronavírus e do sofrimento que lhe estava associado, mas daqueles que tinham de sofrer com as medidas contra o coronavírus. Até o FDP descobriu o seu coração a favor das crianças prejudicadas pelo encerramento de creches e escolas e do respectivo „direito“ à educação. Não se pensou, e muito menos se actuou a favor dos perdedores e perdedoras da normalidade capitalista, cuja situação se agravou com o coronavírus. Em contraste com o apoio das indústrias e empresas relevantes para o sistema, são enganados com um pagamento único de 150 euros (Vorgrimler 2021).

Nesta situação, torna-se claro o que significa a liberdade „incondicional“. Como liberdade formalmente vazia, ela pode combinar-se com qualquer conteúdo material. Tal como a liberdade formal de Kant com a sua pretensão de dever pressupõe a lei moral aplicável, o apelo à liberdade articulado contra as medidas coronavírus já pressupõe sempre a liberdade enfeitiçada na normalidade capitalista – uma liberdade que, como democracia, caminha sobre cadáveres e devora os seus filhos (cf. Scholz 2019). Quanto mais a crise se agrava e a margem de manobra se estreita, mais ela se torna auto-referencial e se „transforma“ em darwinismo social. O foco está no próprio sofrimento auto-referencialmente, enquanto se perde de vista o sofrimento de outras pessoas, ou o sofrimento próprio é jogado contra o sofrimento de outras pessoas. No que respeita à liberdade de viajar, numa entrevista ao magazine televisivo Report, (16) uma turista que se deslocava a uma zona de crise tornou involuntariamente clara a banalidade e a arbitrariedade mortíferas de uma liberdade formal ao dizer: „Não posso pensar sempre nos outros; ‚tenho‘ de pensar também em mim“.

Na primeira fase da pandemia a solidariedade foi politicamente exigida para legitimar e fazer cumprir as medidas de contenção. Mas foi precisamente isso que esbarrou nos limites dos apoios financiados pelo Estado, bem como nos recursos sociais e emocionais bastante limitados para conseguir viver sem a normalidade capitalista. Em breve a retórica da solidariedade foi sobreposta ou substituída pela retórica da responsabilidade pessoal familiarizada com a crise. A normalidade capitalista e a democracia liberal podem agir por vezes de forma mais „solidária“, por vezes mais auto-referencial e „auto-responsável“, por vezes com mais Estado, por vezes com mais mercado. Mas há também um limite para o pingue-pongue entre as polaridades do mercado e do Estado ou da economia e da política: o limite da valorização do capital resultante da diminuição do trabalho e da crise dos sujeitos que a acompanha, incluindo a diminuição dos recursos para processar a crise psicossocialmente.

Para a teologia tudo isto deveria ser razão suficiente para não voltar a deixar a questão da teodiceia abandonada com o regresso à normalidade capitalista. A questão é urgente porque a normalidade capitalista é opressiva e passa por cima de „cadáveres“. Em vez de afirmar a sua liberdade e até de ver nas respectivas „brechas“ uma porta de entrada para falar de Deus, seria importante conjugar a reflexão teológica e a sócio-crítica, assim inscrevendo no álbum de família, no sentido de Tomás de Aquino, que um erro no conhecimento da sociedade leva a um erro no conhecimento de Deus.

 

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Notas

(1) Com a percepção do deslocamento da crítica das condições para o questionamento crítico de Deus, „Deus“ não é „absolvido“ – para usar o significado da palavra „teodiceia“. Isto será demonstrado nas reflexões posteriores deste texto.

(2) Entretanto, foi publicado um ensaio de Striet (2021) com o título A teologia sob o signo da pandemia de coronavírus. A introdução assinala que „o capitalismo global […] levou a que sociedades inteiras ficassem economicamente isoladas“ (ibid., 9) e que – a um nível trans-histórico – „as ondas de doença fazem sempre emergir as desigualdades sociais no seio de uma sociedade“ (ibid.). Tudo isto se move na indefinição de uma nota prévia. A reflexão teológica não é afectada. Permanece com a afirmação acrítica da modernidade e da sua liberdade, bem como com a atribuição sistemática da religião „a um subsistema social“ (ibid., 77), no âmbito do qual se movem as reflexões de Striet sobre a teodiceia. Por isso a sua crítica às declarações da Igreja sobre a pandemia não vai além de uma perspectiva liberal-burguesa (ibid., 61ss.).

(3) A recepção das descobertas científicas é ainda mais importante numa situação em que os „negacionistas do vírus“, os opositores à vacinação e os fantasistas da conspiração fazem alarde de serem críticos da ciência. Da área cristã, pertencem a este espectro os evangélicos e os grupos ultra-ortodoxos, incluindo aqueles que acreditam que podem prescindir de medidas de protecção porque Cristo os protege do vírus.

(4) Sobre o conceito de liberdade de Kant, cf. a secção „Liberdade, igualdade, repressão“, em: Späth 2011, 66ss.

(5) Striet (2021, 13ss.) assinala correctamente no seu ensaio que as ideias de pedagogizar as pessoas através de castigos divinos são repressivas e não podem ser uma resposta adequada à questão da teodiceia. No entanto, a afirmação acrítica da modernidade e da sua liberdade obscurece a sua visão da necessidade de um exame sócio-crítico da modernidade e da pós-modernidade. Isto também não foi resolvido pela justificada suspeita de que as declarações da igreja precisaram de „um desenho negativo da sociedade“ (ibid., 25) para poderem continuar a falar do castigo divino com uma acentuação diferente.

(6) Cf. sobre o contexto etimológico da teodiceia, ver acima.

(7) Sobre a questão da relação entre sujeito, indivíduo e dominação abstracta, cf. Kurz 2004, 153ss. e sobre a „questão da responsabilidade“ Kurz 2001, 232ss.

(8) As declarações de Thilo Sarrazin ou Boris Palmer demonstram que Schäuble não está sozinho (cf. Konicz 2020).

(9) Cf. secção 4 deste texto A graça da ‘razão prática’.

(10) Para tornar concebível a reconciliação escatológica, Striet recorre à ideia de ἀποκατάστασις (apokatastasis), uma reconciliação total (cf. Striet 1998, 73ss.).

(11) Trata-se de uma forma de pensar inspirada sobretudo em Aristóteles e Platão, em que tudo o que existe está ancorado e assegurado numa razão (origem) e num objectivo últimos, independentemente das mudanças histórico-temporais.

(12) O termo „político“ aponta para um aspecto altamente problemático da teologia de Metz e para os limites da sua crítica social. O seu ponto de referência é o domínio da esfera pública democrática e a política como local de mudança social – por outras palavras, contextos que, por um lado, não podem ser considerados sem referência à socialização da dissociação-valor e, por outro lado, chegam ao seu fim na crise. A crítica de Metz à estreiteza existencialista da teologia e à sua ignorância da crítica da sociedade e da dominação é o ponto de referência decisivo para a questão da teodiceia. Ele opõe-se à localização da teologia em nichos „privados“. Uma análise crítica da teologia sócio-crítica de Metz e dos seus limites está pendente num texto separado. Para abordagens a esta questão, ver Böttcher 2013.

(13) O dualismo gnóstico significa pensar em justaposições como espírito e matéria, além e aquém, eternidade e tempo, salvação e não-salvação, bem e mal, luz e trevas, etc.

(14) Sobre a questão da relação entre Deus e o tempo na perspetiva do pensamento científico e matemático, cf. Füssel 2018.

(15) Sobre o Averroísmo, cf. Ibn Ruschd: https://de.wikipedia.org/wiki/Averroes.

(16) Emitida em 9.3.2021.

Original: Herbert Böttcher, “Herr Kant, Seien Sie mir gnädig! Gott vor Gericht in der Corona-Krise” in revista exit! nº 19, 2022, p. 152-200. Tradução de Boaventura Antunes

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