Escalada da Guerra de Ordenamento Mundial sobre a Ucrânia

Contextos estruturais * 2. Fenómenos de crise no Ocidente ‚vitorioso‘ * 3. A crise na Ucrânia e a crise na Rússia * 4. Autocracia russa versus democracia ocidental? * 4.1 Autocracia russa * 4.2 Valores ocidentais e democracia * 5. Dinâmica de escalada e de loucura * 5.1 Escaladas num debate confuso e insano * 5.2 ‚America locuta, causa finita‘? * 6. Considerações psicossociais * 7. A perigosidade da situação actual * 8. O que resta (fazer)?

  1. Contextos estruturais

Para a avaliação da guerra contra a Ucrânia, são decisivos os contextos estruturais em que se integram as acções dos intervenientes: sobretudo o colapso da ordem mundial dominante (1) e dos seus impérios (2) na crise do capitalismo. Colapso que não pode ficar limitado aos ‚Estados em desintegração‘ na periferia. Também são afectados por estes processos de desintegração os antigos impérios bipolares oriental e ocidental, que tiveram ainda de lidar com a concorrente China. Dois novos blocos parecem estar a cristalizar-se: China e Rússia, por um lado, e os EUA com os seus aliados na Europa Ocidental e na região do Pacífico, por outro. (3) Nesta constelação, a competição pela sobrevivência na crise do sistema mundial capitalista faz-se, por exemplo, como luta pelo acesso às matérias-primas, pela moeda de reserva mundial ou por zonas de influência. Nisto a guerra sobre a Ucrânia é uma luta pela sua adesão a blocos recém-formados. Em contraste com o antigo conflito Leste-Oeste, que foi essencialmente travado na fase de prosperidade fordista, trata-se agora de tentativas de superar as crises associadas à desintegração do sistema mundial.

Em 1989, o Ocidente capitalista considerou-se vencedor sobre o Oriente desmoronado. Não se reconheceu que não era um concorrente sistémico, mas o „irmão gémeo“ do Ocidente capitalista que tinha atingido o seu fim: a variante estatista da produção de mercadorias, que já não era competitiva com o Ocidente nem era já capaz de lidar com a revolução microelectrónica. O que não foi percebido foi que este fracasso era o prenúncio da crise agravada do capitalismo, na qual o limite lógico interno da produção de mercadorias marcava os limites do desenvolvimento cada vez mais claramente também no Ocidente. O erro a que o Ocidente sucumbiu não foi – como se afirma repetidamente – a ilusão de uma paz perpétua, que subestimou o desejo imperial da Rússia, mas a ilusão de vitória sobre o suposto concorrente sistémico, que lhe permitiu fanfaronices sobre o „fim da história“ (Francis Fukuyama) na sua conclusão em mercado e democracia, ignorando ao mesmo tempo os seus próprios processos de crise e desintegração.

  1. Fenómenos de crise no Ocidente ‚vitorioso‘

A crise manifesta-se em fenómenos familiares: processos de divisão social, endividamento, destruição das bases ecológicas da vida, desintegração dos Estados, guerras (civis), migração e fuga, „estratégias de processamento“ ideológicas e violentas… Os países dos centros ocidentais conseguiram inicialmente amortecer os processos de crise deslocando-os para o exterior: os EUA através de circuitos de défice, em que – por meio do dólar como dinheiro mundial – o endividamento exorbitante pôde ser mantido durante décadas, no quadro de uma verdadeira economia de bolhas financeiras. No entanto, a crise nos EUA não podia ser ignorada. A desindustrialização e o elevado endividamento também caracterizam a situação nos EUA. Por conseguinte, o estatuto do dólar americano como moeda de reserva mundial já não era uma expressão de força económica. A base para o dólar como moeda de reserva mundial e a razão para investimentos seguros nos EUA foi e continua a ser a sua força militar. A Alemanha, com o „modelo de sucesso“ de Hartz IV e a consequente redução dos custos do trabalho, ao mesmo tempo que desfrutava de vantagens competitivas e de produtividade crescente, conseguiu ascender a (vice-)campeão mundial da exportação, financiando os seus excedentes de exportação através do endividamento dos países importadores na periferia europeia e mundial. Este ’sucesso‘ não foi expressão de uma acumulação bem sucedida, mas o resultado de uma melhor gestão de crise na administração da crise. A nível global, a crise revelou-se designadamente no fracasso das tentativas de criação de ordem político-económica através da intervenção militar nos processos de desintegração. Já não foi possível aos EUA e aos Estados com eles ligados na NATO como coligação dos „disponíveis“ manter o seu papel como polícia mundial e, portanto, como garante da ordem capitalista, o que é óbvio o mais tardar desde a crise da Síria e o fracasso no Afeganistão.

Os processos internos de desintegração desde os anos 70 têm sido sobrepostos pela superioridade aparentemente vitoriosa sobre „o Leste“. Desde 1990, o território da NATO foi alargado em cerca de 1.000 quilómetros na direcção da fronteira russa. Desde então, 14 países aderiram à NATO (4) – e outros dois poderão em breve seguir-se. Isto quebrou as promessas verbais feitas pelo governo alemão em 1989/90 de não expandir a NATO para leste. A Rússia ‚derrotada‘ tornou-se um factor insignificante nos cálculos do poder. As garantias de segurança exigidas pela Rússia foram recusadas e ao mesmo tempo, sob os presidentes Bush e Trump, foram abandonados importantes tratados sobre controlo de armamento e o próprio armamento continuou a aumentar.

  1. A crise na Ucrânia e a crise na Rússia

Existe agora um grande alarme porque a Rússia quer afirmar-se como grande potência e assegurar as suas esferas de influência de forma semelhante aos EUA e à Europa. Não por acaso, isto centra-se na guerra contra a Ucrânia. Esta tinha sido trazida para uma via pró-ocidental com o apoio da Europa e dos EUA. A orientação pró-ocidental não é uma simples expressão de livre autodeterminação, mas integra-se na crise global. Como Estado em erosão, a Ucrânia tinha-se tornado uma loja de serviço para oligarcas de várias cores. Alguns dos oligarcas, e com eles o chamado movimento democrático, viram uma saída na ligação com o Ocidente para a „luta de oligarcas e desintegração“. Este caminho prometia democracia e direitos humanos e sujeitou a Ucrânia a um regime de ajustamento estrutural da forma habitual, que empobrecia ainda mais a população empobrecida e ao mesmo tempo tentava manter os ucranianos à procura de emprego fora dos mercados de trabalho europeus – sendo a excepção a mão-de-obra barata nas colheitas, nos cuidados e na prostituição.

Devido à penetração económica e política ocidental, a Ucrânia tornou-se um local de produção barato e consumidor endividado de bens ocidentais – à semelhança de outros países do Leste e também do Sul da Europa. Enquanto o Ocidente limitava cada vez mais a esfera de influência da Rússia com a expansão para leste da UE e da NATO, a Rússia desindustrializada foi cada vez mais empurrada para o papel de fornecedor de energia e de matérias-primas. Com a guerra contra a Ucrânia, a Rússia quer obviamente estabelecer um – embora ilusório – limite a isto, afirmando o seu estatuto de grande potência na sua esfera de influência histórica com força militar e megalomania ideológica.

  1. Autocracia russa versus democracia ocidental?

4.1 Autocracia russa

A desindustrialização da Rússia foi designadamente o resultado das reformas neoliberais implementadas por Ieltsin com apoio ocidental, sendo bem conhecidos os efeitos do empobrecimento maciço de grande parte da população. O reverso do empobrecimento foi a crescente riqueza dos chamados oligarcas, que ao mesmo tempo ganharam influência política. Putin está associado à reorganização autoritária do capitalismo russo. Certas consolidações económicas não puderam alterar o facto de a Rússia ter tido de assumir cada vez mais o papel de fornecedor de energia e de matérias-primas. Além disso há protestos sociais nos Estados vizinhos da Bielorrússia e do Cazaquistão como resultado da erosão económica. No Cazaquistão, o aumento dos preços do gás e dos bens essenciais, bem como o crescente empobrecimento da população, desencadearam revoltas sociais. Os sonhos da Rússia de um bloco eurasiático independente entre a UE e a China foram frustrados pelos processos sociais e geopolíticos de desintegração. A venda de matérias-primas e energia, bem como o expansionismo militar, tal como visto nas fronteiras da Rússia (Chechénia, Geórgia, Cazaquistão…), mas também na Síria, Líbia e Sahel, (5) destinava-se a consolidar o estatuto da Rússia como potência central.

Atente-se na ideológica ‚música de acompanhamento‘ que legitima um Grande Império Russo em termos de fundamentalismo religioso. A conquista da Crimeia foi justificada pelo significado sacro e religioso da península para a Rússia, já que foi na Crimeia que o Grande Príncipe Vladimir de Kiev aceitou o cristianismo em 988. O filósofo reaccionário Ivan Ilyin (1883-1954) vê o Estado como uma comunidade orgânica governada e mantida unida por um monarca compreensivo e solidário. No auge dos tempos pós-modernos, Aleksander Dugin invoca que a verdade é uma questão de fé e que existe uma verdade russa especial. Este pensamento (6) move-se na vizinhança de ideias étnicas de identidade que andaram de mãos dadas com o genocídio nas guerras de ordenamento mundial travadas nos Balcãs nos anos 90.

No âmbito de tais ideias, o confronto com o Ocidente é cultural e religiosamente carregado de forma fundamentalista. A Rússia defende a sua própria identidade religiosa e cultural contra o declínio religioso e moral do Ocidente. Aqui tornam-se visíveis os contornos de uma „guerra de civilizações“ (Samuel P. Huntington), pela qual George Bush também nutria simpatias. Em qualquer caso, as estruturas familiares tradicionais, „valores“ e religião devem ser posicionados como baluartes de uma ordem estável – acompanhados pela demonização da homossexualidade e do feminismo, bem como pela exaltação do patriarcado. Estas são provavelmente as razões pelas quais o Patriarca de Moscovo Cyril apoia a guerra de Putin como uma luta contra a arbitrariedade ocidental e como protecção dos „irmãos e irmãs ucranianos contra as forças do mal“. (7) Também a simpatia e o apoio na cena do pensamento transversal e dos círculos de extrema direita (8) devem ser compreendidos tendo por fundo a luta contra valores e orientações decadentes. Putin está a combater o „’neocomunismo de Bruxelas – uma ‚UEdeRSS‘ com ‚economia planificada ecossocialista‘, correcção política, destruição dos valores tradicionais do cristianismo e da família“, segundo Jürgen Elsässer. (9) A Ucrânia, que é vista como pertencendo à Rússia devido à sua identidade, deve ser levada de volta ao „império“ a que „originalmente“ pertencia. Os países que poderiam ser contados entre a bruma de um Grande Império Russo têm motivos de preocupação. Isto também se aplica à Polónia, que foi vítima de interesses da (grande) Rússia e da Alemanha várias vezes na sua história.

4.2 Valores ocidentais e democracia

Comparadas com essas grandes fantasias russas, as „narrativas“ ocidentais de liberdade, democracia e direitos humanos não são de modo algum racionais, mas têm também um carácter identitário. Estão inseparavelmente ligadas às relações capitalistas de dominação na sua forma liberal. Estas marcam as condições da sua validade. Quanto mais a crise avança, mais o liberalismo capitalista se baseia também em estruturas e ideologias autoritárias e repressivas, analogamente à história da imposição do capitalismo – quase como um filme da mesma história a andar para trás, só que mais rápido. O sistema de produção de mercadorias, que se deparou com os seus limites lógicos internos e ecológicos externos e ao qual as supostas alternativas socialistas também pertenciam, está a ficar cada vez mais fora de controlo, como se pode ver na forma como lida com aqueles que, como material humano supérfluo, já não podem ser valorizados e são tratados como resíduos e lixo, e na forma como lida com a catástrofe climática. O nível político está a perder a sua margem de manobra. As instituições estatais estão a enfrentar os seus limites funcionais com a diminuição das possibilidades de financiamento. A anomia está a espalhar-se em conglomerados de contextos estatais, oligárquicos e mafiosos de difícil compreensão, até aos „senhores da guerra“, (10) o que também é evidente na guerra contra a Ucrânia, com a entrada em acção de brutais exércitos mercenários e gangues de ambos os lados. Em última análise, os processos de desintegração não podem ser ultrapassados por agravamentos autoritário-repressivos, que também perdem as suas bases nestes processos.

Assim, o autoritarismo não é o oposto do liberalismo, mas o seu indispensável reverso. (11) À semelhança das alucinações da vitória do Ocidente sobre o comunismo depois de 1989, é agora uma das „ilusões“ do Ocidente defender a Ucrânia contra um ditador descontrolado, e defender o Ocidente livre e democrático contra um Oriente autoritário dominado pela Rússia.

Na avaliação de Augusto Pinochet, Leste e Oeste juntam-se de forma enviesada. Putin é considerado um admirador de Pinochet. As democracias ocidentais tinham tão pouca objecção ao seu golpe contra um governo eleito como à sua aniquilação do povo, uma vez que se tratava de defender a economia de mercado contra o socialismo e o comunismo, na implementação de um primeiro projecto neoliberal com a ajuda de „economistas“ da Escola de Chicago em torno de Milton Friedman. Com o ditado „O Estado social escraviza. O Estado policial liberta“, Franz Hinkelammert tinha resumido as suas críticas a este projecto. Em 1993, como Segundo Presidente da Câmara de São Petersburgo, Putin explicou aos representantes empresariais alemães que considerava uma ditadura militar no modelo chileno uma solução desejável para os problemas de então da Rússia. De acordo com a lógica da auto-imagem neoliberal utilizada para justificar a ditadura de Pinochet, ele distinguiu entre violência „criminosa“ e „necessária“. A „violência criminosa“ visava eliminar as condições da economia de mercado, enquanto que a „violência necessária“ protegia os investimentos do capital privado. Por conseguinte, saudou expressamente possíveis preparativos de Ieltsin e dos militares para uma ditadura segundo o modelo de Pinochet. A acta regista os aplausos dos representantes das empresas alemãs presentes, bem como do vice-cônsul geral alemão. (12) As variantes liberais e autoritárias da produção de mercadorias convergem na sua prontidão para a repressão violenta que „passa por cima de cadáveres“. O autoritário-repressivo é inerente ao lado liberal da produção de mercadorias.

  1. Dinâmica de escalada e de loucura

O Chanceler Scholz – aplaudido pela coligação e pela CDU – proclamou o „início de uma nova era“ e consequentemente lançou um gigantesco programa de armamento, já por si expressão da militarização da política. No entanto, tinha-se abstido ainda mais entregas de armas, especialmente das chamadas armas pesadas, justificando esta contenção com avisos de uma escalada para a utilização de armas nucleares. O Chanceler inicialmente reticente, porém, ficou sob pressão crescente – primeiro através de um debate alimentado pelos círculos Verde e FDP, e finalmente através da pressão dos EUA e dos outros países da NATO, como se tornou evidente na reunião em Ramstein organizada pelo Secretário de Defesa dos EUA.

5.1 Escaladas num debate confuso e insano

O debate sobre a contenção de curta duração do Chanceler alemão na entrega de armas mostra que aparentemente não pode haver contenção, mas apenas é admissível „mais“ e „ainda mais“, mesmo que possa levar a uma maior escalada da guerra. Dá a impressão de que apenas cada vez mais entregas de armas podem ajudar a Ucrânia. São estilizadas como bitola moral para a assunção de responsabilidade e conotadas como expressão de solidariedade com a Ucrânia. Aqui os perigos da escalada para uma guerra nuclear são ignorados e a utilização de armas nucleares é banalizada. Strack-Zimmermann do FDP não quer ser „constantemente influenciado por cenários militares“. Aqueles que não entregam imediatamente armas pesadas arriscam-se a uma „terceira guerra mundial de facto“, como tinha a certeza Anton Hofreiter, dos Verdes. Michael Theurer (FDP) falou na rádio pública Deutschlandfunk (13) sobre „confrontação nuclear“ e deu a impressão de que uma guerra nuclear poderia ser travada porque poderia ser controlada. Isto faz lembrar uma „operação especial“, comentou Katharina Körting. (14)

A questão de quando a Alemanha poderia ser considerada envolvida na guerra tornou-se um ponto crucial no debate sobre a entrega de armas. O ministro federal liberal da Justiça, Buschmann, que tinha consultado o Manual de Direito Internacional, tem alguns conselhos. Segundo eles, as entregas de armas não devem ser consideradas como participação na guerra. Isso só entra em consideração com a formação para as operar. „Só se, para além do fornecimento de armas, a instrução da parte em conflito ou o treino na utilização de tais armas também estivessem em questão, é que se deixaria a área segura da não-guerra“, de acordo com um parecer de peritos do serviço científico do Bundestag. (15) Assim: „Sinal verde para armas pesadas da Alemanha“. Entretanto, já estamos um passo à frente: desde meados de Maio, soldados da Ucrânia têm sido treinados em Idar-Oberstein, na Renânia-Palatinado, para utilizarem estas armas. Mas mesmo isso não é suficiente. Marie-Luise Beck, dos Verdes, apela mesmo a uma zona de interdição do espaço aéreo. Não há obviamente qualquer paragem agora. Putin é justamente acusado de violar o direito internacional, mas por outro lado finge-se que respeitará as definições do direito internacional quando se trata da questão de uma nova entrada na guerra. Putin é declarado maligno, imprevisível e louco, ao mesmo tempo que os jogadores de risco na disputa confiam nele para não iniciar um „confronto nuclear“ devido a cálculos racionais. E, se o fizer, então há opções para novas escaladas.

Em tempos de debates sobre desarmamento, o movimento pacifista foi acusado de „ética de boas intenções“. Não sem razão, se significava que as exigências morais derivavam de princípios gerais sem mais delongas. Agora é o contrário. Os belicistas derivam a exigência moral para a entrega de armas pesadas directamente do sofrimento dos ucranianos. Não há limite para o que se pode acrescentar. Num tal recrudescimento de boas intenções, o sentimento entranhado agitado, impelido pela raiva e pela indignação, acaba por reinar supremo. Nesta dinâmica, a questão do fornecimento de armas pesadas torna-se uma questão de compromisso. A actual „questão crucial“ é: O que pensa sobre armas pesadas? Ao mesmo tempo, torna-se um teste de lealdade e de humanidade.

Uma tempestade de indignação moral irrompeu quando foi publicada uma carta a Scholz assinada por um grupo de publicistas e artistas. Nela tinham advertido contra uma escalada da guerra e do sofrimento que ela traria ao povo da Ucrânia. Os autores teriam falhado o teste de lealdade. Tiveram agora de suportar ser chamados „intelectuais com propensão para o paternalismo“ e „combatentes em casa“ (provavelmente do lado de Putin?). A queixa de Habermas sobre o „impetuoso impulso moralizante da liderança ucraniana determinada a vencer“, bem como as exigências de um „compromisso“ são vistas como um „juramento declaratório da liberdade e humanidade“ por intelectuais alemães que „não fazem boa figura ao lidar com a guerra de agressão da Rússia“. (16) O veredicto antecipado do tribunal mundial foi proferido por Jan Böhmermann: „A carta aberta a Olaf Scholz envia o sinal tranquilizador: Se Putin atacar a Alemanha com armas nucleares, os danos intelectuais serão de qualquer modo limitados“. (17)

5.2 ‚America locuta, causa finita‘?

O debate e a hesitação do Chanceler chegaram provavelmente ao fim no período que antecedeu a reunião do Secretário de Defesa dos EUA com os seus colegas dos outros países da NATO e de 14 países não pertencentes à NATO em Ramstein. Agora não são só as armas pesadas „de produção alemã“ que devem ser entregues. Foi também decidido – apesar das definições do direito internacional – dar formação a soldados ucranianos na Alemanha, juntamente com os Países Baixos e os EUA. Ao mesmo tempo tornou-se claro no contexto da reunião que a estratégia dos EUA não visa simplesmente o direito de defesa da Ucrânia, mas – como o Secretário de Estado da Defesa Austin deixou claro durante a sua visita conjunta à Ucrânia com o Secretário de Estado Blinken – „enfraquecer a Rússia ao ponto de já não poder fazer o que fez quando invadiu a Ucrânia“. Já perdeu muita capacidade militar e, diz-se frequentemente, muitas das suas tropas. (18) O New York Times no final de Abril disse que „Washington já não está numa luta pelo controlo da Ucrânia, mas numa luta que coloca os EUA mais directamente contra a Rússia“. (19) Isto equivale a enfraquecer permanentemente a Rússia para que seja eliminada como concorrente na luta por novas constelações geopolíticas.

Não se trata simplesmente do direito da Ucrânia à autodeterminação, mas de defender a normalidade liberal ocidental enfraquecendo a Rússia, ou de uma luta por novas constelações geopolíticas, nas quais as fronteiras da NATO são deslocadas o mais possível para leste. Neste processo a Ucrânia torna-se um campo de batalha. A guerra travada na Ucrânia está a causar cada vez mais mortes, destruiu cidades e aldeias, destruiu meios de subsistência. Aqueles que supostamente devem ser defendidos são sacrificados à normalidade ocidental. Aqueles que alimentam a guerra à distância (ainda segura) e veneram os seus actores e vítimas como heróis acabam por ser „combatentes em casa“ que põem outros a combater na guerra em seu nome. Ao mesmo tempo, fazem o juramento declaratório do que a liberdade e a humanidade ocidental implicam: As pessoas tornam-se material estratégico quando são usadas para a guerra. Os refugiados são bem-vindos se servirem a guerra e a sua legitimação – desde que tenham a cor de pele „certa“. (20) Se forem supérfluos incapazes de ser valorizados, podem afogar-se no Mediterrâneo, sangrar até à morte no arame farpado da NATO nas fronteiras, ser colocados em campos ou deportados para as mãos de todos os muitos „Putins“. Também faz parte desta lógica que os defensores do humanitarismo ocidental e os apóstolos morais da guerra não pensem nos seus efeitos no agravamento da fome e das catástrofes climáticas etc. A ameaça de catástrofes de fome só se torna uma questão relacionada com o bloqueio russo dos portos ucranianos, porque, sem referência ao agressor russo, o sofrimento dos „meros“ famintos permanece demasiado remoto para agitar o coração humano e a mente ética de um „combatente em casa“, e muito menos para o ofender, e certamente para não dar ao seu cérebro „alimento para pensar“. A ameaça de um embargo ao gás, pelo contrário, dá „que pensar“. É aí que a moral das entranhas e da indignação começa a estalar. O presidente da associação patronal, Arndt, adverte para as consequências económicas de uma paragem abrupta da importação de gás da Rússia, porque: „Temos não só de mostrar força moral, mas também de ser economicamente mais fortes do que as ditaduras deste mundo.” (21)

  1. Considerações psicossociais

A crise do capitalismo também afecta os sujeitos na sua constituição psicossocial. (22) A base da sua constituição psicológica é o trabalho internalizado e a família como lugar de socialização. Ambas as instâncias de socialização, que são relações de dissociação mutuamente dependentes, estão a colapsar cada vez mais na crise do capitalismo. As pessoas são assim atiradas de volta sobre si mesmas. Face à erosão das relações de emprego e dos contextos sociais, é suposto que assumam responsabilidade pessoal pela sua sorte, mas também pelo seu fracasso. A auto-realização é exigida como auto-adaptação a fenómenos de crise tais como o emprego precário, o perigo iminente de descer da classe média ou mesmo de se tornar supérfluo e ficar só. A auto-realização pessoalmente responsável torna-se uma adaptação aos constrangimentos de se sujeitar, como „eu empresarial“, (23) ao stress permanente de uma auto-optimização infindável, a fim de sobreviver na concorrência e, em caso de fracasso, assumir „responsabilidade pessoal“ por isso e recomeçar com a optimização. Novo ‚bilhete de lotaria‘, nova sorte. A dinâmica da pulsão que, no contexto do trabalho internalizado, foi orientada para se „recompensar“ ou ser recompensado por ela após o adiamento da pulsão na disponibilidade para o trabalho e para o desempenho, está a atingir os seus limites. Com a ligação entre trabalho e recompensa caem as possibilidades de sublimação ao nível psicossocial.

Cada vez mais pessoas atiradas de volta sobre si mesmas correm o risco de perder a ligação ao mundo dos objectos. A auto-optimização está associada à mensagem: ‚Podes, se quiseres!‘ Independentemente das circunstâncias objectivas, as pessoas estão a ser desafiadas quanto à sua grandeza. Quando falham, experimentam-se a si próprias como pequenas e insignificantes, mas supõe-se que se apoderam de uma nova grandeza nos processos de auto-optimização. „Fazer-se grande quando se é realmente pequeno“ e „acusar-se e julgar-se a si próprio“ – ou seja, a variante depressiva de recuar para dentro de si próprio – andam de mãos dadas. Ambas as variantes „têm dificuldade em relacionar-se com o mundo dos objectos, giram à sua volta, não conseguem encontrar o caminho para os objectos“. (24) A ilusão da grandeza oferece uma forma de afastar a mortificação narcisista experimentada no ’ser pequeno‘. Neste contexto, a autodestruição pode ser experimentada como a expressão final da auto-realização, na qual a própria grandeza é encenada.

Como é que as pessoas lançadas de volta sobre si próprias lidam com os horrores da guerra e as suas escaladas ameaçadoras? A guerra da Rússia contra a Ucrânia e a sua ameaçadora escalada para uma guerra mundial nuclear também coincide com as outras crises que quase não deixam qualquer espaço para respirar. A crise do coronavírus ainda não terminou e muito menos as suas consequências económicas. O colapso climático aproxima-se e está presente, entre outras coisas, em fenómenos climáticos sempre novos e catastróficos. Guerra, coronavírus e clima agravam as situações de crise social através da escassez, interrupções nas cadeias de mercadorias, aumentos de preços. Em tudo isto se misturam os receios de restrição, declínio e morte. Em relação à guerra da Rússia contra a Ucrânia, é impressionante como muitos tendem a evitar o tema. (25) Será isto uma espécie de paralisia depressiva, alimentada pela impotência de estar à mercê de uma dinâmica incontrolável e impenetrável? O coronavírus também era imprevisível, mas pelo menos havia máscaras e vacinas para protecção. A crise climática está a aproximar-se, mas aparentemente está tão distante que ainda não é sentida na pele por muitos.

Nos debates públicos, destaca-se uma moralização extrema „baseada nas entranhas“. Combina a acusação dos outros com a acusação de si próprio, a acusação de Putin com a auto-acusação de o ter subestimado e de ter cedido a ilusões de coexistência pacífica. A exoneração da culpa parece estar no boicote económico, até e incluindo o boicote ao fornecimento de energia russa, bem como no fornecimento de „armas pesadas“. Tal expiação, especialmente no que diz respeito ao fornecimento de „armas pesadas“, faz lembrar a venda de indulgências e a possibilidade que abria para se comprar a libertação da culpa. Mas, acima de tudo: o ciclo de „culpa e culpabilização“ não pode ser evitado assim. O fornecimento de armas implica que estas armas sejam utilizadas para matar e destruir. Por um lado, os boicotes económicos ameaçam o padrão da própria qualidade de vida e estão ligados ao facto de as pessoas mais pobres, em particular, terem de suportar os custos de tal „expiação“. E a libertação moralmente necessária da culpa de ter apoiado Putin através da compra de energia leva, na procura de um fornecimento de energia responsável, à dependência de outras figuras e potentados moral e politicamente questionáveis.

„O que quer que faça ou se abstenha de fazer, uma pessoa torna-se inevitavelmente culpada“, afirma Stephan Grünewald. (26) Se isto não for simplesmente entendido como uma pós-moderna afirmação tranquilizadora sobre um dilema insolúvel, uma das muitas tensões e paradoxos com que temos de viver e agir, a declaração poderia ser esclarecida com as percepções do fragmento de Walter Benjamin sobre o „Capitalismo como Religião“. (27) De acordo com ele, o capitalismo „é presumivelmente o primeiro caso de um culto que não procura a remissão, mas a culpabilização. … Uma enorme consciência de culpa, que não sabe remir-se, recorre ao culto não para nele expiar esta culpa, mas para torná-la universal… e sobretudo para incluir o próprio Deus nesta culpa.“ (28) Com a inclusão de Deus no contexto do sistema capitalista do ciclo de culpa e culpabilização que não pode ser remido, „a transcendência de Deus“ „caiu“ mas „não está morta“, pelo contrário, está „incluída no destino humano“, e tornou-se um „estado mundial de desespero“, „pelo qual ainda se espera“ (29). A transcendência removida assim não desaparece, mas torna-se o fetiche da imanência capitalista. (30) Não existe na imanência uma saída deste contexto fetichista e, portanto, existe uma culpabilização permanente, mas nenhuma expiação. Nenhuma acção pode escapar ao ciclo de culpa e culpabilizção. (31)

Os súbditos, no entanto condenados à acção, são levados para trás e para diante, entre a impotência e a grandeza. Impotentes, são atirados de volta sobre si próprios e são sempre culpados a diferentes níveis, economicamente, quando geriram mal ou se geriram mal, politicamente, quando fizeram as escolhas erradas. Ganham grandeza nas ilusões de serem autónomos e capazes de agir como sujeitos. A grandeza política aparece nas ilusões associadas à defesa destemida e resoluta da liberdade ocidental e manifesta-se na força de não ser chantageado pela „encarnação“ do mal em Putin. Deste modo a „erosão autoritária-anómica“ do „Leste“ pode ser simplificada „num novo império do mal“. (32)

Uma razão para a vacilação entre a impotência e a megalomania, ou para a defesa contra a impotência na megalomania, é a perda do objecto e, portanto, da referência à realidade. Desaparece na moral dos princípios ‚baseada nas entranhas‘. As máximas de acção perigosas e obrigatórias derivam de princípios rectos, que encontram expressão em princípios gerais, sabedorias mundanas e „senso comum“, sem reflectir sobre as condições sociais como objecto de reflexão. Isto pode aliviar temporariamente as entranhas moralmente perturbadas e a impotência experimentada como humilhante. Mas assim tão pouco se pode fugir à verdadeira impotência como ao contexto de culpabilização inerente às relações fetichizadas.

Os instrumentos conceptuais que poderiam ajudar a compreender o que se passa já foram desmantelados em nome de um „pragmatismo sem ilusões“, na aversão pós-moderna a grandes conceitos e grandes teorias, capazes de chegar ao conjunto das relações, e numa hostilidade generalizada à teoria. Assim, a referência do pensamento à realidade social foi cortada. „Pretende-se que a verdadeira contradição social, que já não pode ser tratada da forma anterior, seja simplesmente banida do pensamento.“ (33) Um resultado de tais processos é que quem reflectindo recusar a moral das entranhas no debate actual deve esperar ser insultado como patrocinador intelectual e „combatente em casa“ do lado de Putin.

  1. A perigosidade da situação actual

As presentes guerras de ordenamento mundial são uma resposta ilusória à desintegração do „sistema da soberania territorial que começa a dissolver-se diante dos olhos e com a involuntária cumplicidade dos aparelhos capitalistas democráticos“. (34) Com a guerra da Rússia contra a Ucrânia, o conflito sobre a desintegração da ordem mundial está a ser travado entre „blocos“ que possuem armas nucleares, cuja soberania está ao mesmo tempo a ser corroída pelos processos de desintegração da produção de mercadorias. Nos EUA, os processos de desintegração socioeconómica estão a aproximar-se dos da Rússia. A Rússia parece agora também estar encostada à parede militarmente. Os esperados sucessos rápidos da „operação militar especial“ não se concretizaram em todo o caso. A NATO, que espera obter vantagens geopolíticas enfraquecendo a Rússia, está a conduzir a Rússia e a si própria para uma situação da qual provavelmente não há saída sem perder a face. As concessões territoriais da NATO, que Putin poderia apresentar como uma vitória, são diametralmente opostas aos objectivos que a NATO prossegue e propaga como não negociáveis. Voltar à situação de antes da guerra iria deslegitimar completamente Putin.

As aporias que se abrem na situação de guerra estão por sua vez ligadas à crise do capitalismo, em cujos processos de desintegração também está envolvida a soberania do Estado, incluindo da Rússia e dos EUA. No fundo, os processos de desintegração caracterizam-se pelo facto de o fim-em-si abstracto e irracional da produção de mercadorias, para multiplicar o capital por amor de si mesmo, estar cada vez mais a ir contra os seus limites e a não chegar a nada, cada vez menos podendo ser compensado pela acumulação simulada nos mercados financeiros. As bolhas financeiras rebentam e provocam crises económicas. A economia e os mercados financeiros são „estabilizados“ com novas injecções de dinheiro até que as bolhas rebentem novamente e, no final, nada possa ser compensado.

Este vazio do processo de valorização mostra-se a nível individual no vazio dos sujeitos, que com o trabalho perdem a sua base social e psicossocial e correm o risco de cair no „nada“. „Depois de o sujeito burguês esclarecido se ter despojado das suas vestes, torna-se claro que o núcleo deste sujeito é um vazio; que se trata de uma forma ‚em si‘ sem qualquer conteúdo“. (35) A auto-aniquilação, acompanhada pela aniquilação de outros, como se mostra nos amoques, torna-se para o sujeito autoconfiante e livre a última saída da experiência da sua impotência e humilhação ‚auto-infligida‘, do seu vazio sem perspectiva. Oferece-se como a possibilidade de mostrar grandeza e demonstrar poder na aniquilação. A nível individual, esta vontade de aniquilação funciona como uma dupla aniquilação: „Por um lado, visa a aniquilação dos ‚outros‘, aparentemente com a finalidade da sua autopreservação a qualquer preço; por outro lado, é também uma vontade de auto-aniquilação que executa a falta de sentido da própria existência na economia de mercado“. (36)

Similarmente ao nível dos sujeitos, é evidente um duplo potencial de destruição ao nível do contexto social global: um que se deve à normalidade capitalista e à sua aplicação, e um final quando esta normalidade se depara com os seus limites finais. „O conceito de amoque democrático agora bem pode ser levado à letra, no plano da acção militar. … Quanto mais a situação mundial se tornar insustentável e perigosa, mais o aspecto militar toma a dianteira e menor se torna o constrangimento em recorrer à violência de alta tecnologia em grande escala, sem sequer fazer grandes perguntas.“ (37)

O „mundo incontrolável“ e „a incompreensibilidade dos problemas“ mobilizam uma fúria difusa para a destruição. “No plano da psique administrativa do mercado mundial replica-se precisamente o que acontece na psique dos perpetradores individuais de amoques“ (38) No quadro desta psicodinâmica, a aniquilação nuclear também se torna concebível e viável. Na crise crescente da produção capitalista de mercadorias, não é de modo nenhum o bem e o mal, a racionalidade e a irracionalidade que se confrontam, mas sim os agentes e sujeitos que estão envolvidos em estruturas de relações irracionais fetichizadas e nas suas cargas normativas e simbólicas. Os Estados-nação, que estão em guerra entre si ou entre perigosas constelações de blocos, são partes do sistema fetichista e insano de produção de mercadorias, que se depara com os limites da sua capacidade reprodutiva e no âmbito do qual não pode haver coexistência pacífica de pessoas. Na defesa contra o vazio e impotência experimentados, uma última saída poderia ser procurada buscando a própria grandeza na aniquilação atómica como a última expressão da poderosa auto-afirmação, a fim de afastar a mortificante impotência. „No mundo do capital consumado apenas a franca insanidade é realista. Sob estas condições, o chamado pragmatismo assume necessariamente traços escatológicos.“ (39)

Gustav Gundlach, um representante da teoria social católica, deixou claro como uma escatologia tão perversa pode ser apresentada teologicamente, mesmo nos dias da „guerra fria“. O direito e o dever de defesa aplicam-se incondicionalmente, mesmo perante a aniquilação de si mesmo e do mundo; pois: „Mesmo no possível caso em que permanecesse como sucesso apenas uma manifestação da majestade de Deus e da sua ordem, que lhe devemos como seres humanos, dever e defesa são os bens mais elevados concebíveis. Sim, se o mundo acabasse no processo, isso também não seria um argumento contra a nossa argumentação.“ (40) Entretanto, se seguirmos Walter Benjamin, a transcendência de Deus migrou para a imanência da socialização capitalista como sua fetichização. Como „Deus ‘secularizado’ e reificado“, Deus representa agora a „forma do valor expressa em dinheiro“, a „abstracção real metafísica objectivada da existência moderna“. (41) A „queda do mundo“ (42) deve ser oferecida como sacrifício não a um fetiche transcendental, como expressão de uma ordem ontológica, mas à majestade das relações imanentemente fetichizadas. Tal „religião“ já não é „a reforma do ser, mas a sua destruição“. (43) Os esoteristas tocam a sua música de acompanhamento nos seus anseios de extinção na fusão com o cosmos – sonhos que não se tornaram „modernos“ apenas na pós-modernidade, mas já foram sonhados no início do Iluminismo e estão obviamente em voga em tempos de crise, tal como antes do início da Primeira Guerra Mundial.

  1. O que resta (fazer)?

Esta questão deixa-nos perplexos. Nenhuma instrução para agir pode ser derivada das considerações teóricas necessárias para compreender – certamente nenhuma que seja inequívoca. Além disso, a aporia em que esbarra a questão da acção deve-se à „progressão“ das relações de crise, em que o globo está a ser conduzido à beira do abismo. Na imanência não há saída e, no entanto, não há saída sem acção. Do meu ponto de vista, a renúncia a cada vez mais entregas de armas é óbvia. Com cada vez mais armas, o sofrimento e a morte de pessoas e a destruição do espaço vital apenas ameaçam continuar exigindo cada vez mais vítimas. Seria defender uma forma vazia de Estado.

Assim, com a renúncia ao fornecimento de armas, poder-se-ia tentar interromper a dinâmica da escalada. Isto poderia abrir uma janela para algo que Walter Benjamin tinha em mente com o conceito de interrupção. Opõe-se à continuidade do fluxo do tempo e faz com que a interrupção tenha força para reconhecer o presente. Quer interromper o progresso sem sentido da modernidade, que conduz à catástrofe. A interrupção em vez de „Mais do mesmo!“ poderia abrir uma janela de tempo para a reflexão crítica e interromper caminhos que podem levar a uma catástrofe global que ainda vai muito além do que vivemos nas catástrofes „normais“ do capitalismo de crise.

Para nós, o conhecimento do presente implica uma „crítica social radical“, como „crítica da metafísica real terrena“, como „crítica da constituição fetichista da sociedade“. (44) Sem ela é impossível compreender o que „se passa“ como barbarização e aniquilamento no agravamento da crise do capitalismo. Na sua reflexão, a „crítica social radical“ interrompe o continuum das relações fetichistas. Visa uma „ruptura total e clara com a metafísica real capitalista, com o princípio da realidade economista e com o nomos da modernidade“. (45) Perspectivas realistas apenas na via de uma reflexão que interrompa o continuum da normalidade, reflexão transparente e autocrítica sobre o sistema social louco da produção de mercadorias e suas crises crescentes, em que o próprio sistema está cada vez mais em amoque.

Herbert Böttcher

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(1) https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=aktuelles&index=23&posnr=765. Em português: http://www.obeco-online.org/rkurz456.htm

(2) https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=aktuelles&index=2&posnr=805. Em português: http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz21.htm

(3) Vd. Tomasz Konicz, Auf zum letzten Gefecht [O último combate], in: Konkret 4/22.

(4) Jan Varwick, Raus aus der Eskalationsspirale mit Russland [Sair da espiral de escalada com a Rússia], Telepolis 14.1.2022.

(5) Vd. Sandro Mezzardo, Aus dem Krieg desertieren. Drei Gründe sich dem russischen Angriffskrieg zu widersetzen. Für einen neuen Internationalismus [Desertar da guerra. Três razões para se opor à guerra de agressão russa. Por um novo internacionalismo], in: medico international, rundschreiben 01/22, 12-15., 12s.

(6) Ver também Andreas Umland, Das eurasische Reich Dugins und Putins. Ähnlichkeiten und Unterschiede [O Império Eurasiano de Dugin e Putin. Semelhanças e diferenças], 2014, https://www.kritiknetz.de/images/stories/texte/Umland_Dugin_Putin.pdf.

(7) Throalf Cleven, Des Kremls heiliger Krieg [A guerra santa do Kremlin], in ‚Kölner Stadt-Anzeiger‘ de 4.5. 2022.

(8) Vd. Benjamin Bidder, Russlands rechte Freunde [Amigos de direita da Rússia], 2016, https://www.spiegel.de/politik/ausland/russland-wladimir-putins-rechtsextreme-freunde-in-europa-a-1075461.html; Vd. também Patrick Gensing, Silvia Stöber, Moskautreue Rechte, 2016, https://www.tagesschau.de/inland/neurechte-russland-101.html.

(9) Citado em: https://taz.de/Querdenker-unterstuetzen-Putin/!5838247/

(10) Vd. também Gerd Bedszent, Zusammenbruch der Peripherie. Gescheiterte Staaten als Tummelplatz von Drigenbaronen, Warlords und Weltordnungskriegern [Colapso da periferia. Estados falhados como campos de jogos para barões da droga, senhores da guerra e guerreiros do ordenamento mundial], Berlin, 2014.

(11) Vd. detalhadamente Robert Kurz, Blutige Vernunft. Essays zur emanzipatorischen Kritik der kapitalistischen Moderne und ihrer westlichen Werte, Bad Honnef, 2004 (Em Português: Razão sangrenta. Ensaios sobre a crítica emancipatória da modernidade capitalista e seus valores ocidentais, online: http://www.obeco-online.org/livro_razao_sangrenta.html); Roswitha Scholz, ‚Die Demokratie frisst immer noch ihre Kinder‘ – heute erst recht! In: exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, Springe 2019, Heft 16, 30 – 60 (Em Português: ‘A democracia continua a devorar os seus filhos’ – hoje ainda mais!, online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz32.htm)

(12) Vd. Pinochet als Vorbild [Pinochet como modelo], Neues Deutschland de 31.12.1993, https://www.nd-aktuell.de/artikel/461493.pinochet-als-vorbild.html.

(13) Citado de: Katharina Körting, Debatte über Krieg und Aufrüstung: Fortschreitende Verharmlosung [Debate sobre guerra e armamento: Banalização progressiva], in: der Freitag de 24.4.2022

(14) Ibid.

(15) Kölner Stadt-Anzeiger de 2.5.2022.

(16) Markus Decker im ‚Kölner Stadt-Anzeiger‘ de 30.4./1.5.2022.

(17) Kölner Stadt-Anzeiger de 3.5.2022.

(18) Citado em: Florian Rötzer, Beim Ukraine Krieg geht es nicht um die Ukraine [A guerra na Ucrânia não é sobre a Ucrânia], Telepolis 29.4.2022.

(19) Ibid.

(20) Vd. Bernhard Torsch, Refugees welcome, Ausländer raus! [Refugiados bem-vindos, estrangeiros fora!], in: Konkret 4/2022; Vd. também Ramona Lenz, Die Grenzen der Solidarität [Os limites da solidariedade], https://www.medico.de/blog/die-grenzen-der-solidaritaet-18565.

(21) Kölner Stadt-Anzeiger de 7.5.2022.

(22) Vd. Leni Wissen, Die sozialpsychische Matrix des bürgerlichen Subjekts in der Krise, in: exit! 14 Krise und Kritik der Warengesellschaft, Angermünde 2017, 29 – 49. Trad. port.: A matriz psicossocial do sujeito burguês na crise, online: http://www.obeco-online.org/leni_wissen.htm

(23) Vd. Ulrich Bröckling, Das unternehmerische Selbst. Soziologie einer Subjektivierungsform [O Eu Empresarial. Sociologia de uma forma de subjetivação], Frankfurt am Main 5/2013.

(24) Herbert Böttcher, Leni Wissen, Zwischen Selbstbezüglichkeit und Solidarität? Corona in der Leere des Kapitalismus, Netztelegramm 1/2021. Sonderausgabe von exit! und Ökumenischem Netz Rhein-Mosel-Saar, 7. Trad. port.: Entre a auto-referencialidade e a solidariedade? O coronavírus no vazio do capitalismo, online: http://www.obeco-online.org/leni_wissen1.htm

(25) Vd. Stephan Grünewald, „Das Thema Krieg wird gemieden“ [„O tema da guerra é evitado“], in: Kölner Stadt-Anzeiger de 4.5. 2022.

(26) Ibid.

(27) Walter Benjamin, Kapitalismus als Religion [Capitalismo como religião], in: ders., Fragmente Autobiographische Schriften. Gesammelte Werke Band VI, Frankfurt am Main 1991, 100 – 103.

(28) Ibid., 100s.

(29) Ibid., 101.

(30) Vd. Herbert Böttcher, Kapitalismus – Religion – Kirche – Theologie [Capitalismo – Religião – Igreja – Teologia], in: Kuno Füssel/Michael Ramminger (Hg.), Walter Benjamins prophetisches Erbe [O Legado Profético de Walter Benjamin], Münster 2021, 31 – 48.

(31) Vd. Robert Kurz, Geld ohne Wert. Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der Politischen Ökonomie, Berlin, 2012, 389ss. Trad. port.: Dinheiro sem valor. Linhas gerais para a transformação da crítica da economia política, Antígona, Lisboa, 2014, 352ss. [Neste parágrafo do texto convém ter presente a nota inserida no capítulo mencionado a edição portuguesa de Dinheiro sem valor: “o termo alemão aqui usado, Verschuldung, pode significar tanto «culpabilização» como «endividamento». De forma análoga, a sua raiz Schuld significa, conforme o contexto, «culpa» ou «dívida». Outro tanto se aplica às suas diversas formas derivadas.” – Nota do tradutor]

(32) Vd. Tomasz Konicz, Krieg als Krisenbeschleuniger [A guerra como acelerador de crises]

(33) Robert Kurz, Das Ende der Theorie. Auf dem Weg zur reflexionslosen Gesellschaft, in: Robert Kurz, Weltkrise und Ignoranz. Imperialismus im Niedergang, Berlin 2013, 60 – 67, 66. Trad. port.: O fim da teoria. A caminho da sociedade sem reflexão, online: http://www.obeco-online.org/rkurz53.htm

(34) Robert Kurz, Weltordnungskrieg. Das Ende der Souveränität und die Wandlungen des Imperialismus im Zeitalter der Globalisierung, Springe 2022. Erweiterte Neuauflage der Originalausgabe Bad Honnef 2003, 414. [Trad. port.: A Guerra de Ordenamento Mundial. O Fim da Soberania e as Metamorfoses do Imperialismo na Era da Globalização, online: http://www.obeco-online.org/livro_guerra_ordenamento.htm, 279]

(35) Ibid., 68 [47].

(36) Ibid., 71 [48].

(37) Ibid., 429 [290].

(38) Ibid.

(39) Robert Kurz, Marx lesen. Die wichtigsten Texte von Karl Marx für das 21. Jahrhundert. Herausgegeben und kommentiert von Robert Kurz, Frankfurt am Main 2001, 395. Trad. port.: Ler Marx! Os textos mais importantes de Karl Marx para o século XXI Editados e comentados por Robert Kurz, online: http://www.obeco-online.org/livro_ler_marx.htm, 197.

(40) Gustav Gundlach, in: Stimmen der Zeit [Vozes do tempo] 164 (1959) 13, citado em: Rupert Feneberg, Gerechtigkeit schafft Frieden. Katholische Friedensethik im Atomzeitalter [A justiça cria a paz. Ética católica da paz na era atómica], München 1985, 126.

(41) Kurz (Nota 27), 69 [47].

(42) Gundlach (Nota 33)

(43) Benjamin, (Nota 21), 101.

(44) Kurz (Nota 27), 434s [294].

(45) Ibid., 436 [295].

 

Original “Eskalation des Weltordnungskrieges um die Ukraine” in www.oekumenisches-netz.de/www.exit-online.de27.05./29.05.2022. Tradução de Boaventura Antunes