O crescente cultivo da soja sob o capitalismo traz consigo um enorme sofrimento para as pessoas e para a natureza. Apenas uma ruptura com a sociedade fetichizada do capitalismo global pode superar este sofrimento. A Bíblia também indica essa ruptura com os ídolos, como é evidente, entre outros, no primeiro relato da criação, que eu gostaria de discutir brevemente a seguir, no final do nosso evento.
Na Gênesis, 2,15, consta que Deus colocou o ser humano no Jardim do Éden, incumbindo-lhe de cultivá-lo e guardá-lo. Hoje, podemos entender isso como uma incitação para que a humanidade protegesse os recursos naturais necessários à subsistência e para que não explorasse excessivamente a criação. Devemos ajudar a moldar a natureza e, até certo ponto, onde a vida humana possa estar ameaçada, estabelecer limites a ela. Ao mesmo tempo, tal como enfatizou o Papa Francisco na sua encíclica “Laudato Si”, devemos reconhecer o seu próprio valor. Cultivar o mundo à nossa volta e no qual vivemos não significa dominá-lo, mas sim moldá-lo respeitosamente. Ao fazer isso, o ser humano não age como um sujeito diante do mundo como objeto. Em vez disso, ele dá um passo atrás e entra numa relação de reconhecimento com os outros e com a criação. Ao mesmo tempo – como é claro no culto –, ao reconhecer uma transcendência que aponta para além da realidade criada e das suas próprias ações, ele ultrapassa-se a si próprio. De acordo com a tradição judaico-cristã, essa transcendência remete a um Deus pessoal. O ser humano é feito de terra e pertence à terra. Ao mesmo tempo, ele se volta para transcendência: para outras pessoas, para um novo céu e uma nova terra, para Deus.
O nome de Deus, que é revelado a Moisés e com o qual ele é enviado para libertar o seu povo escravizado do domínio do Egito, é num certo sentido o fio que atravessa ambos os Testamentos da Bíblia. Esse nome está associado ao grito de libertação, à memória da libertação que teve lugar e à esperança de libertação definitiva da injustiça e da violência, do sofrimento e da morte. A experiência e a esperança de libertação do primeiro relato da criação (Gn 1-2,4a) – que é mais recente que o segundo (Gn 2,4b-25) – são atualizadas quando Israel encontra-se no fim do exílio babilônico. A partir de sua experiência de libertação, esse povo reconhece que o criador do mundo é o Deus da libertação – e não os ídolos míticas babilônicas representadas nas estrelas.
Na criação, o Deus de Israel fez do homem um cocriador (cooperator dei) e deu-lhe a assim chamada incumbência de dominar (Gn 1,28: “subjugar”). Essa incumbência tornou-se um problema na história efetiva, na medida em que foi entendida como domínio antropocêntrico sem qualquer respeito pelos recursos naturais. A tradução dos termos hebraicos é, infelizmente, um dos principais problemas aqui: Os verbos hebraicos para governar (radah e kavash) significam em primeiro lugar “cuidar” e, muito literalmente, “pisar”. Há achados arqueológicos em que o gado é representado sob o pé de um homem que, armado, repele animais selvagens como leões. Isso torna claro que a incumbência recebida não foi a de dominar no sentido de uma ideologia monárquica absolutista, mas sim no sentido de proteger e de cuidar do entorno necessário os próprios seres humanos. Como “imagem e semelhança” (in German: Ebenbild) de Deus, o ser humano é, além disso, incumbido de “governar” como “cocriador”. O domínio de Deus, porém, contém a negação, a rejeição dos sistemas humanos de dominação e de violência. Nesse sentido, o ser humano está a serviço da libertação de todo e qualquer domínio: seja sobre natureza, seja dos homens sobre as mulheres (pois os seres humanos foram criados como homem e mulher, Gn 1,27), de modo que nenhum domínio patriarcal pode ser admitido.
O ponto alto do primeiro relato da criação não é a criação do ser humano, mas a do sabá. O sabá é, ao mesmo tempo, uma promessa. A recordação da libertação e a interrupção das atividades remetem à perfeição que deverá tornar-se realidade em uma nova criação, em um novo céu e em uma nova terra, dos quais o novo êxodo de Israel e a libertação da Babilônia foram a antecipação. O sabá como dia santo de perfeição e de repouso para toda a criação (Gn 2,2-3) só adquiriu o seu significado na Babilônia: tornou-se, por assim dizer, uma marca da identidade de Israel, uma espécie de templo temporal em substituição ao templo destruído pelo exército babilônico, e isso numa época em que Israel se sentia abandonado por Deus, mesmo que apenas “por um breve instante” (Is 54,7). Assim, o sabá e, na sua tradição, o nosso Domingo representam também uma crítica à dominação, ou seja, eles expressam fidelidade ao único Senhor, ao Senhor e Deus de Israel, que os cristãos e cristãs reconhecem nos caminhos do Messias Jesus.
Voltar-se para o Deus de Israel e o seu Messias implica em uma rejeição, a saber, a rejeição do domínio da monarquia de Israel, do domínio babilônico, do Império Romano e de todos os outros governos idólatras – inclusive das relações fetichistas do capitalismo de hoje, cuja destruição social e ecológica alcançou dimensões sem precedentes na história. O sabá pode ser entendido como uma ligação entre o mundo divino e o mundo terreno, como o santuário de Israel dentro da criação e um sinal da proximidade de Deus, bem como um gesto de gratidão e admiração pela fidelidade libertadora de Deus em tempos de sentimento de abandono.
Assim, também nós devemos entender a abertura para Deus e para o seu sabá como um alinhamento contra a dominação da natureza animada e inanimada, como uma relativização das possibilidades humanas, como uma interrupção do crescimento supostamente perpétuo e como abertura para um horizonte de libertação dos seres humanos e da natureza do ídolo capitalista que a tudo determina, e, finalmente, como uma abertura para novas formas de libertação até à esperança de um novo céu e de uma nova terra.
Dominic Kloos, tradução de Lia Ishida